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Pela beleza do mundo

“Mas eu encontrei o mundo inteiro, enquanto procurava algo. Mas eu fui salva pela poesia, e eu fui salva pela beleza do mundo.”

Mary Oliver

 

É tempo de colheitas. As árvores enchem-se de frutos coloridos e de aromas cheios, fecundos de vida e sabor. Pelas vilas e aldeias, as festas, feiras e festivais retiram-nos da zona do labor e do dever, abrindo portas para os sentidos e para o corpo, na abundância de alimento, artesanato, tradição, música, dança e celebração da vida.

Expandem-se sorrisos e roupas floridas, pés desnudos e mergulhos salgados. Lugares internos de espaço e lazer, descanso e maior intimidade com o mundo.

Pergunto-me, enquanto caminho pelas mesmas festas e festivais, quando me desnudo para o tempo quente, e até nos mergulhos frescos na água salgada, se estamos despertos para o mundo a que pertencemos. Se nos recordamos dos porquês das festas e festivais, da alegria e da abundância, se reconhecemos a bênção das colheitas e a gratidão pelo calor, ou se passeamos somente numa festa como qualquer outra. Se encontramos no toque com a terra, na frescura da água e nos ventos quentes do verão, a intimidade com a Mãe que nos acolhe, aquece e nutre desde o primeiro sopro de vida, ou perdemos a sagrada conexão com a vida, enquanto nos distraímos dos dias cheios e complicados do inverno.

Em alguns de nós, permanece a saudade. Não o sabemos expressar completamente, como definir algo que não se conhece? Por vezes, são bosques selvagens e intocáveis, montanhas e desertos, ou grutas recônditas que nos sussurram na alma, como se vibrassem lentamente no mesmo compasso de cada batida do coração. Outras vezes, ansiamos formas simples de vida, onde se caminha mais devagar, se olha mais vezes para o céu estrelado e se conhece o nome e a essência das plantas.

Não importa tanto do que sentimos falta, de qual vazio nos habita a alma ou nos desarranja o sentir. Ele canta-nos ao sangue, por entre suaves melodias, ou fortes gritos que doem, esta busca incessante de pertença, de lugares que nos possuam e completem. Não é palpável, esta ânsia. Mas a canção… essa sentimo-la por entre os dedos, na brisa que nos faz vibrar as pestanas e entreabrir os lábios, pois torna-se imprescindível RESPIRAR.

Quando a sinto, essa melodia que tantas vezes dói, é-me tão fácil perder, quanto encontrar-me. Perco-me ao sair do mundo comum, esse por onde caminho distraída, acreditando que fazer mais e mais rápido me levará algures e encontro-me no restolhar da folhagem, na espuma do mar, no sol que se esconde no horizonte e na lua que se ergue e move as águas.

A saudade não me mata, dá-me vida. Porque para pertencer ao mundo, preciso de me lembrar das colheitas, da abundância e da importância da celebração. Preciso de recordar-me que no verão já se inicia o tempo escuro. Que quando deixo um punhado de areia escorrer-me por entre os dedos, tenho nas mãos memórias de montanhas, penhascos e desertos. Que existem árvores com centenas de anos, testemunhas de história vida. Que uma pedra onde me sento pode ter sido pisada por dinossauros, guardado princesas num castelo ou recebido sangue e lágrimas.

Comove-me pensar que o vento que passa já despenteou os meus antepassados, que vejo estrelas no céu que se extinguiram há muito, que existem olhares que se encontram desde os mesmos lugares de saudade e conseguem reconhecer-se.

Caio na mesma armadilha que tantos de nós, de buscar a perfeição das formas, das produções e dos sentires. Mas é num qualquer suspiro que desperto, e por instantes me chega a beleza do mundo. Nunca vem embrulhada em roupagens belas, corpos firmes ou rostos estéreis. A beleza que anseio não nasceu para ser capa de revista.

Ela instala-se nos ritmos e nos cheiros humanos, terrenos, comuns e extraordinários, na passagem do tempo e nos retornos cíclicos da vida. Vejo-a nas cicatrizes dos troncos das árvores e dos corpos. Nas linhas de rostos que contam memórias e nas curvas e peles que amaciam com o tempo.

Na flor que desabrocha e na folha que cai, nas nuvens que se desenham como estórias que querem ser contadas, nas trovoadas que despertam as psiques selvagens e as emoções que não podem ser guardadas. No silêncio e na contemplação, onde a conexão parece surgir de linguagens que fui perdendo. Encontro a beleza, por vezes, no ato de respirar. E ela, de alguma forma, desperta-me a saudade e a pertença.

Descobri há tempos que existe uma palavra africana que significa “saudades de algo, de um tempo, de um lugar, de uma vida que nunca de viveu.” Significa também Mar. Quando a descobri, sorri. Mar e saudade caminham de mãos dadas.

Talvez a memória de pertença exista por todo o mundo. E o caminho para lá, habite assim, por entre mundos. Entre os instantes em que vamos sabendo quem somos.

É tempo de colheitas. Que possamos colher-nos, também, por entre a crueza inteira e magnânima do mundo. E quiçá, nesse olhar de pertença, ser salvos pela beleza.

 

 

 
 

Artigo publicado na Revista Vento e Água nº 45

 

ÉLIA GONÇALVES
DIRECÇÃO CRIATIVA E DE PROJECTOS

 

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