Blogue

Na memória dos ossos

“Por favor, lembra-te de mim

Não te esqueças do meu nome

Deixa uma vela acesa

E leva a minha chama contigo

Cantarás as minhas canções,

Quando a minha voz deixar de falar?

Levar-me-ás nas tuas memórias?

Lembra-te de mim.”

Eivor

 

 

Tenho-me perguntado, diversas vezes, ao longo da minha vida, onde pertenço. Nunca senti que pertencesse, realmente, à minha família de origem. E apesar de ter tido a bênção de criar uma nova família onde sei que sou parte basilar, há um lugar em mim que se sente despojado de pertença. Não há muito tempo, numa vivência, chegou-me ao corpo a consciência de que é impossível não pertencer, pois todos somos filhos da grande mãe, e essa é a nossa pertença mais radical. E, contudo, existe uma parte de mim que ainda se sente órfã.

 

No sistema familiar no qual nasci, não havia a noção de clã: o berço, o estatuto, a honra e a boa educação eram o mais importante, e sair fora dos seus limites bem traçados implicava uma exclusão automática. Como todos, eu nasci selvagem. Tão selvagem que desde logo tomei para mim ir contra tudo isto, fazendo constantes braços de ferro para levar a minha avante, e logo encontrando o poder e o domínio das mãos e do cinto do pai, do silêncio e do menosprezo da mãe. Ainda assim, eu levava-os comigo no corpo, no coração e nas aprendizagens, e uma parte de mim cresceu igual a eles.  Quando encontrei a minha família de acolhimento, encontrei um clã, um lugar de amor e de aceitação, um lugar onde a vida era vivida com alegria mesmo perante as dificuldades, e onde os critérios que eu tinha conhecido, apesar de importantes, não estavam no topo da lista. Por uns tempos, senti que aquela era a forma certa de ser e estar, e saciei uma parte da minha sede. No entanto, outras coisas me começaram a faltar, e acabei por perceber que, de certa forma, eu não pertencia ali totalmente. A família que criei com o homem com quem partilho a vida há mais de trinta anos, e os filhos que geramos e educámos, é um lugar seguro, um colo e um ninho, onde posso ser quem sou.

 

Porém, trago dentro uma orfandade que sinto muito mais vasta e antiga do que a dos sistemas familiares. Uma orfandade que sempre me fez buscar, nas relações que estabeleço, um nível de conexão mais fundo e mais forte do que aquilo que parece estar disponível no mundo lá fora. Ao longo do caminho, fui sentindo que tinha saudades de algo que nunca vivi, mas sei que existiu. Há uns anos fiz um teste de ADN e descobri grandes percentagens de outras culturas, algumas que já intuía, outras que me surpreenderam, mas que me trouxeram alguma clareza relativamente a perceções, formas de sentir e pensar. Em criança e adolescente, na minha ânsia de rejeitar aquilo que via como agressor, nunca quis saber de ancestrais ou de tradições, pois tudo isso me soava a mais subjugação, a pessoas que eu via como sendo más, pouco conscientes e muito desrespeitosas da dignidade alheia (leia-se, da minha). Ainda hoje uma parte de mim se faz alerta e pronta a defender-se quando tento pensar neles com carinho. Porém, tenho estado a aprender, lentamente, que tal como sou filha da terra, sou também filha de todas estas pessoas, que tiveram as suas lutas e desafios, que erraram, até cometeram atos condenáveis e, contudo, pagaram o seu preço. Tenho estado a tentar aceitá-los e amá-los com tudo o que puderam e conseguiram ser, convidando-me a honrá-los na íntegra, e esse é um desafio constante.

 

São muitos, muitos mais do que me lembro ou do que sei que existiram. Alguns, estão já para lá do alcance da memória mental, mas residem na memória celular, na memória dos ossos, e falam-me de perda, de dor, e de tudo o que fazemos para tentar sobreviver, incluindo agredir e dominar o outro. Falam-me da coragem e da bondade, e também do mal que habita em cada coração, e que é um mistério. Do poder, e de como o desejamos, seduzidos pela ideia de que assim estaremos invulneráveis às circunstâncias da vida. Falam-me dos negócios que fizemos, das almas que vendemos em troca do que achávamos podia suprir as nossas insuficiências. Falam-me de trauma, de domesticação, de ausência de liberdade. E também me falam de amor: o amor que está disposto a tudo para nos fazer sobreviver, e nesse afã consegue enjaular a nossa inocência. Eu também sou cada um deles, essa bondade e esse mal, esse colonizador e essa fera enjaulada, essa inocência pura.

 

Aqui, escrevendo estas linhas, choro por eles, e por mim. Choro por tudo o que sei que existiu de belo, de bom, de verdadeiro, e se perdeu na noite dos tempos, nas garras do medo profundo que existe em cada um dos nossos corações. Choro por todas as formas de vida que foram violadas, mortas, escravizadas, e que despareceram da nossa memória, as suas histórias por contar. Choro por todas as outras que se tornaram elas nos violadores, nos assassinos e nos esclavagistas que perpetuaram o ciclo. Choro por mim, pelo pai, pela mãe, pelas avós e avôs, os do meu sangue e os do meu coração, todos. Choro por essa força de vida selvagem e inocente que, uma e outra vez, é perseguida e agrilhoada. E, em todo esse choro, dentro de mim, essa mesma parte que sente saudades do que nunca viveu – de um passado de relação e conexão, de simplicidade e devoção, onde cada ser era visto como uma parte sagrada do divino – essa mesma parte diz-me que essa força inocente e selvagem é perene e profundamente resiliente, impulso do verdadeiro amor, pulsando em cada um de nós, tentando sempre, regressando sempre, insistindo sempre. Afinal, a Vida encontra sempre caminho.

 
 

Artigo publicado na Revista Vento e Água nº 45

 

 

 

PATRÍCIA ROSA-MENDES
FORMADORA – ÁREA TERAPIA

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *