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Os Amores de Afrodite

“A nossa tarefa, à medida que vamos atravessando o modernismo, poderá ser tomar consciência da poesia, da espiritualidade e do mistério em todas as formas de relacionamento, compreendendo que tanto as alegrias como os desafios constituem uma educação na alma. Podemos ainda fazer frente aos valores atuais, e compreender, séria e profundamente, que um bom amigo é, talvez, mais valioso do que um bom emprego, que um genuíno casamento de corações significa mais do que o sucesso, e que os tão penosos finais, fracassos, discussões, divórcios e ruturas no nosso caminho para a intimidade, possuem uma misteriosa necessidade.”

Thomas Moore

Vivemos numa época em que gostamos de definições. Gostamos de abrir as coisas ao meio, remexê-las por dentro e depois apresentar a sua essência em duas ou três linhas, num rótulo claro e definido, que nos permita arrumá-las dentro de nós e no mundo lá fora. Temos feito isso com quase tudo: planetas, engrenagens, seres vivos e sentimentos, nada nos escapa. E assim vamos acreditando que dominamos a vida e o mundo, porque sabemos como tudo funciona. E, contudo, abençoadamente, há coisas que nos escapam. Que, por muito que tentemos, por muitas definições que atiremos para cima da mesa, acabam por não se deixar apanhar completamente, fugindo por entre os dedos, mostrando-se ao avesso, rindo da nossa arrogância, trocando-nos as voltas e tirando-nos o tapete. É no amor que penso. Esse que nunca encontrou uma definição que o engaiolasse e que insiste em nos mostrar, uma e outra vez, o pouco que sabemos sobre ele.

O amor que, geralmente, circunscrevemos à relação romântica, concedendo-lhe um pouco do reino filial e paternal, para logo se desvanecer por aí. Robert Johnson, um psicoterapeuta junguiano, conta, num dos seus livros, como a língua inglesa é pobre em relação ao amor, pois ao contrário de outras, apenas tem uma palavra para este tipo de sentimento, ao passo que o sânscrito, por exemplo, tem 96 e o persa antigo 80. De facto, a nossa língua estabelece também o limite da nossa consciência, e com ela a capacidade de discernimento e expressão, quer a nível interno quer externo. Confundimos ciência com dissecação laboratorial e vamo-nos empobrecendo emocionalmente.

Em tempos idos, por exemplo, por esta época do ano, logo que o sol preenchia mais os dias e aquecia as terras, as culturas antigas, observando a explosão de vida que se dava, sob a forma de plantas, flores e animais, celebravam, também elas, esta força criadora, garante da continuidade de todos nós. Enquanto impulso criador humano, também a sexualidade era celebrada, presumo que com alegria e entrega, livres que estariam das ideias de pecado original. Contudo, acredito que, ao contrário de nós, estas gentes não fizessem equivaler, em iguais medidas, sexo e amor. Talvez tivessem muito mais experiência de uma das qualidades básicas do amor, uma que nos tem vindo a escapar, em proporção direta à nossa crescente digitalização.

No panteão grego clássico, a deusa Afrodite reinava sobre o amor. E muito embora o que conhecemos dela hoje esteja toldado pela visão patriarcal, ainda assim é possível descortinar no que restou dos seus cultos e dos escritos sobre ela, a excecional qualidade relacional do Amor, que se valida a si mesmo.

Entre muitas outras coisas, o amor pede a conexão que nutre: um dar-se a conhecer ao outro e uma curiosidade e abertura para o conhecer também. Para todos nós, seres humanos, isto é vital. E cada vez mais suspeito que também o é para todos os seres vivos. Na verdade, toda a vida está em relação profunda de uns com outros: uma árvore está em estreita relação com as outras árvores e plantas, através da rede micelar, com os pássaros e todos os outros seres vivos que a habitam, bem como um rio está em relação com a paisagem que atravessa e molda, ou o lobo com a sua matilha e também com as suas presas, com esse mesmo rio e essas mesmas árvores da floresta em que vive. E, os seres humanos que faziam – e fazem – parte das culturas indígenas, sabiam-no com o corpo e com a mente. Por isso chamam de seus parentes todos os seres vivos com quem partilham os lugares que habitam. Afinal, estão em estreita relação com tudo e com todos. Talvez não tenham a experiência de solidão que nos assola hoje, a nós que vivemos em metrópoles de milhares de pessoas, e em prédios de dezenas de casas. Uma das relações que nos falta é a que nos dá chão, a relação com a teia de vida da qual fazemos parte. Pode ser que busquemos resgatar essa ligação visceral, de bichos que somos, de pertença radical ao ecossistema, nas profundas e misteriosas relações que estabelecemos com os nossos cães e gatos, ou com as plantas que enchem a nossa casa e nos permitem serenar o sistema nervoso, recuperando partes esquecidas.

Também na relação de amizade se revela uma outra face do amor, igualmente vital e nutridora. Na Irlanda antiga, por exemplo, havia um lugar muito especial para a amizade profunda, para o amigo de alma, alguém a quem chamavam anam cara. Nesta relação, fala-se uma linguagem comum, onde a partilha traz uma escuta sem juízo ou preconceito, e é permitida uma comunicação aberta e íntima de pensamentos e sentimentos. Aqui, não há necessidade de aprovação, nem há condições, outros propósitos ou intenções; revelamos e somos revelados, vivendo mistérios da alma. Ter amigos de alma é possuir um tesouro raro, um oásis onde podemos saciar outras sedes e outras fomes, e que nos proporciona um outro tipo de pertença.

Esquecemos também o amor que arde, brilhante, nos temas que nos apaixonam. Podemos ter nascido com uma vocação que se converteu numa profissão. Ou, podemos viver essas paixões em hobbies ou interesses particulares. Seja onde for, o amor por um tema ou por um labor também faz parte do reino de Afrodite: podemos entregar-nos a este amor com mais dedicação e vontade do que a outros, experimentando uma harmonia e uma sensação de realização que acalentam o coração.

O poeta David Whyte, no seu livro “Three Mariages”, fala eloquentemente dos três tipos de casamento que podemos consumar nas nossas vidas: o casamento com o/a companheiro/a de vida, o casamento com o nosso trabalho e o casamento com o nosso Self. A este último dedicou Rumi toda a sua vida, escrevendo centenas de poemas ao Amado, a centelha divina que adivinhava dentro de si, “mais perto do que a veia do pescoço”, e que trazia o profundo Mistério em si. Era este amor, dizia ele, que buscavam os amantes quando se entregavam nos braços um do outro, com os olhos cheios de estrelas e paixão, e que os místicos encontravam em oração e meditação. Creio que o amor é este eterno Mistério, a força que nos impele, seja para a procriação seja para a criatividade, seja nos braços do amado ou nas conversas inspiradoras. Acredito que, onde estiver, estará esta relação profunda com o Outro: aqui encontramos a conexão, dando-nos, e encontramo-nos a nós, através do Outro, seja ele qual for. Citando Jane Harrison, no seu estudo da religião grega,  “apenas o mistério da vida, e do amor que gera vida, permanece, intimamente realizado e totalmente inexplicado; e daí (apenas) Afrodite manter a  sua divindade até ao fim.

 
 

Artigo publicado na Revista Vento e Água nº 44



PATRÍCIA ROSA-MENDES
FORMADORA – ÁREA TERAPIA

 

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