“Primeiro nasceu o Caos. Depois,
Gaia de amplos seios, lugar sempre seguro de todos os imortais
que habitam o nublado cume do Olimpo.
E Tártaro, no fundo do chão de caminhos largos.
Finalmente Eros, o mais belo entre Deuses imortais,
Que solta os membros e cativa, de todos os Deuses e todos os homens,
o coração e a vontade sensata no seu peito. “
Hesíodo
Apesar de visto, em grande parte das versões gregas, como filho de Afrodite, para Hesíodo, Eros nasce do próprio Caos, sendo assim um Deus Primordial. Desta forma, desse vazio caótico onde nascerão todas as coisas, Eros, sujo nome significa desejar ardentemente, vem unificar, dar sentido, organizar o que está separado.
Habituamo-nos a ver Eros como o deus do amor, das setas que picam e nos deixam reféns da paixão. Ou o erotismo como o lugar da sexualidade humana, imagens com ninfas meio despidas ou fotos a preto e branco de corpos nus. Ou danças, livros e filmes sensuais. Porém, assim como existem variadas versões da mitologia, sem que nenhuma esteja mais correta do que outra, a energia erótica necessita, também, de versões mais inteiras, ampliadas e vivas.
Olhando para Eros como o filho do Caos, talvez possamos olhar a energia erótica como a que organiza, busca e constrói. Não no sentido arrumadinho e dual para o qual aprendemos a olhar as coisas, mas como forma de dar força e integridade, expressão e vida.
A vida é erótica, pois segue um sentido. A terra é erótica, na sua sensorialidade, convida-nos à contemplação dos seus ciclos absolutamente entregues de vida e morte, ao nascimento do fruto, ao florescimento, à explosão de cores, e também ao mirrar, ao diminuir, e à lentidão necessária para o que morre poder renascer.
Na visão tradicional de um erotismo meramente sexualizado e humano, perdemos o esboço de uma vida plenamente erótica na sua totalidade. Eros junta, cria pontes, organiza. Como remembrar a vida erótica? Talvez fazendo o mesmo. Criando pontes, juntando, organizando.
A vida erótica permeia-se em cada poro da existência. Ela está no ato de respirar, quando o mundo externo e o interno se encontram através da vida que trazemos para dentro. Ela habita os nossos sentidos, com os cheiros, e as cores, sabores, sons e texturas.
Ela move-nos pela vida através “do que cativa o coração”, o desejo. No caos do mundo, a força do desejar ardentemente é o que nos ajuda a escolher caminhos, encontrar o que nos serve, ou, pelo menos, o que nos chama. Pela sua força primordial, porém, a energia erótica necessita de tempo e trabalho, pois queima a visão, de tão intensa.
Não nos é familiar, o saber esperar, antes de partir para a ação. Permanecer um pouco no caos, para não ficar refém do desejo. Porém, esse é o poder da energia criativa, da força de vida, do erotismo puro. Ele organiza o Caos e, para o fazer, necessita de nascer dele.
E se permanecêssemos com o desejo, quando este surge, antes de correr para o queimar? O que aconteceria? Como é que a alma se expressa, quando permanecemos com a energia erótica, nos permitimos recebê-la de todos os lados e a usamos de forma sustentada? Quando a expressamos desde dentro, como é que a criatividade se mostra? A vida criativa necessita de tempo, de espaço e de sensorialidade. Necessita de recetáculo e movimento.
Ela chama-nos pelo desejo, nem sempre um desejo claro que nos impele à ação. Por vezes, desperta-se em nós uma ânsia de absoluto, um lugar desarrumado, a alma desaustinada, o “acordar despenteado”. Desorganização e Caos, sem forma ou sentido, mas a pedir expressão profunda.
E, apesar de filho do Caos, Eros, líbido pura, será também, sempre o filho de Afrodite, a deusa alquímica, lugar de caldeirão, a força do trabalho criativo que vem do amor e do desejo.
Despertar os sentidos é algo que necessita de tempo. Caos e Caldeirão. Alquimia e contemplação. Permanecer e cuidar, despertar os sentidos para a vida que se move dentro e fora. Aguardar o nascimento de Eros, quando a alma se desarruma. E ele chega, através de um lugar que nos pede criatividade, expressão pura de quem somos, uma forma única e um sentido interno perante a vida.
Não podemos não viver o Caos. Mas podemos aguardar por Eros. Na vida em geral. Numa nossa enraizada presença. Nos dias em que o peito dói, pedindo amor sem objeto, e a forja criativa que nos transforma de Caos em Cosmos.
Artigo publicado na Revista Vento e Água nº 44
ÉLIA GONÇALVES
DIRECÇÃO CRIATIVA E DE PROJECTOS