“Esta
condição de ir imaginando está, ainda, absolutamente intacta em nós.”
Martin
Shaw
Sempre contámos
estórias, nós, os humanos. Sempre. Há provas disso, para quem delas precisa,
sob a forma de desenhos ocre nas paredes de grutas. Ou de inscrições em pedras,
em círculos. Só a nossa disposição inerente para nos silenciarmos quando alguém
verbaliza as palavras mágicas “era uma vez”, seria suficiente. Mas,
poderia ainda acrescentar todas as horas passadas em frente a um ecrã, absorvidos
em filmes; ou folheando livros, em que o corpo está sentado aqui neste mundo
material, mas a psique, essa cavalga livre por estepes sem fim. E poderia ainda
falar das estórias que vamos contando as nós mesmos, desde que nos tornamos
conscientes de ser, sobre a mãe, o pai, a vida que nos tocou e quem por ela se
atravessa, foge ou permanece. As estórias são quem nós somos. E, no fim, é numa
estória que nos vamos tornar, assim que morrermos. Apenas uma estória que, se
tivermos sorte, sobreviverá mais uma ou duas gerações, até um dia ser
totalmente esquecida.
Entre as estórias e a imaginação há uma ligação profunda e inquebrável. No entanto, imaginação é uma palavra que hoje em dia tem pouco crédito. Associada a algo falso ou fantasioso, remetida para os confins do nosso cérebro brilhante, onde só as capacidades analíticas e lógicas têm lugar de realeza, a imaginação parece-se mais com aquele personagem meio tolo que só serve para divertir os soberanos. E, no entanto, até esta analogia vem carregada de símbolos que nos podem aproximar mais da essência. Afinal, eram os bobos aqueles a quem era permitido dizer muitas verdades, escondidas nas suas piadas e perdoadas pela sua aparente patetice. Também a imaginação fala de verdades escondidas sob um manto de inocência. E sem a imaginação, nenhum de nós estaria aqui, agora, pois tudo aquilo que é hoje palpável e mensurável (como tanto gosta a nossa mente cartesiana), foi em tempos apenas uma ideia, um sonho, provavelmente ridículo aos olhos de quem, na altura, ocupava as cátedras dessa era.
E, se somos feitos de estórias, e é à imaginação que devemos a nossa vida, estórias, cultura e imaginação caminham juntas, ao longo de séculos, talvez milénios. Constroem visões da vida, paradigmas, costumes, comportamentos (ou seja, cultura). Guiam-nos por certos caminhos, no pressuposto de certas premissas, que nos levam a determinados lugares. E nascem, elas próprias, dos lugares físicos onde nos gerámos, nós, seres humanos. Porque se há motivos comuns para muitas delas, há também muitas diferenças, diferenças tão abissais como um glaciar pode ser diferente de um deserto. Ou como uma floresta tropical luxuriante pode distinguir-se de uma planície, um rio gorgolejante do imenso oceano, uma ilha, do centro de um continente. E nós, que nascemos uns perto de um rio, outros no topo de uma montanha, outros ainda, mesmo à beira de um glaciar, todos somos uma manifestação desse lugar, e esse lugar continua a viver dentro de nós, a chamar-nos constantemente, até que um dia possamos lá regressar, muitas vezes para aí morrer.
Carregamos o
lugar e as estórias. Claro que, na nossa mente analítica, tudo isto é uma
coincidência, as nossas estórias não têm nada a ver com o lugar, as nossas
famílias são as nossas famílias, e algumas nem sequer nos contavam estórias
quando éramos pequeninos. Sim, porque as estórias são apenas para as crianças,
que os adultos já puseram de lado essas fábulas infantis e supersticiosas e
descobriram que a vida são apenas uns gramas de minerais, água e outros elementos
misturados aleatoriamente. Que pequenina se tornou, esta mente. De tanto
analisar, separou-se de tudo, até do corpo de que é parte, e convenceu-o de que
também ele está separado de tudo o que vê, toca e sente.
Contudo, os
nossos ancestrais, que não tinham ainda caído sob o feitiço dos tempos, sabiam
muito bem que eram o corpo e a mente que pertenciam à terra, e que fora a terra
que os tinha moldado, e que lhes moldava também o destino – o fado –
apresentando-lhes o desafio diário de viver, de vez em quando abençoado:
abundante, solarengo, livre, fértil, apaixonado, recém-nascido… E como as
pessoas sabiam tudo isto nos ossos, mesmo que fossem analfabetas, viviam
ligadas – à terra, ao lugar, umas às outras, aos mais do que humanos – e em
observação. Por isso, quando chegavam os invernos longos e frios, sentavam-se e
contavam estórias. As estórias que já lhes tinham chegado pelas bocas das suas
avós – as humanas, e as Outras – e contavam também as suas próprias estórias,
aquelas que elas tinham vivido, em parceria com a própria terra. E dado que
estavam limpas de tanta informação e tantos dados científicos e conhecimento
académico, elas usavam o grande dom com que todos os seres humanos nasceram
(aquele que possibilitou a dita informação, ciência e academia): a imaginação.
Imaginação,
lugar e estórias são os criadores das nossas vidas, os que nos guiam ao longo
da vida, que nos dizem quem somos, quais os nossos valores e quais os nossos
desejos. Os que nos permitem criarmos as nossas próprias estórias pessoais,
embora sem que tenhamos noção disso. Estas estórias não ficam, nem podem ficar,
sempre iguais: alturas há que têm de ser revistas, renovadas, porque a Vida
flui e transforma-se constantemente. Isso não invalida o que foi, apenas ajusta
o que queremos que passe a ser. Para que possamos fazer este ajuste
necessitamos de nos permitirmos escutar, sentir, imaginar, ou seja, trazer uma
visão do mundo interno para o mundo externo. De nos abrirmos ao mundo do qual
somos parte, à terra que habitamos e ao “suave animal” que é o nosso corpo,
para entrarmos num outro mundo, um mundo que não sendo factual, não é por isso
menos real, profundo e duradouro.
As estórias – os
contos de fadas, os mitos, as estórias que são as nossas vidas – não são coisas
de criança, fantasias tolas, contos inferiores. São a trama de que é feita a
própria Vida: a nossa, particular, pequena, ínfima perante o grande plano geral
dos biliões de vidas a acontecer, a cada momento, neste planeta, e a Vida
enquanto processo criativo e criador, o Mistério que nos trouxe aqui, nos
sustém e nos levará, quando chegar a hora. Então, convido-vos a olhar para as
estórias, aquelas que parecem só “coisas de criança” com um olhar novo. A
sentarem-se e a escutarem as estórias do vosso lugar. A escutarem as vossas
próprias estórias, contadas também por outras vozes, que não a da mente
dominante, domesticada e dominadora. E depois, contem-nas. Às estórias. Porque
são elas que irão perdurar.
Artigo publicado na Revista Vento e Água nº 43
PATRÍCIA ROSA-MENDES
FORMADORA – ÁREA TERAPIA