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A Gruta


“Todas as coisas começam suavemente com uma semente, uma ideia, um sonho, que deitado dormente, espera o seu próprio tempo e estação antes de poder crescer.”

Ian Siddons Heginworth

 

A Primavera está mesmo aí, e já se sente no ar. A esta terra perto do mar – terra de dunas e pinhais por onde as gaivotas voam, terra de charnecas inundadas pela neblina matinal, onde as gralhas negras nos observam e os ouriços e os coelhos se escondem, também já chegaram as andorinhas. E as árvores despidas, mostram agora os seus brotos, prontos a despontar numa fecundidade verde que também me chega. De repente, o corpo sabe que outro ciclo se iniciou. De há uns anos para cá, porém, a chegada da Primavera traz-me sempre uma resistência interna: não quero largar o Inverno, anseio pelo frio e pela chuva, pelos dias curtos e pelas noites longas, pela escuridão e pelo sossego. Pela gruta. Quero ficar mais tempo ali, numa ânsia por uma hibernação que nunca acontece porque os ritmos da vida moderna desenraizaram-me dos meus ciclos naturais.

No mito de Perséfone, Hades rapta a deusa donzela levando-a consigo para o submundo. Deméter, mãe de Perséfone e deusa dos cereais, provedora de alimento aos seres humanos, deambula, louca de dor, procurando a filha, e nessa agonia recusa-se a fazer brotar o alimento, gerando uma fome generalizada, até que a filha regresse para junto de si. Uma das camadas simbólicas do mito refere-se à passagem das estações do ano, ao Outono e Inverno em que o alimento escasseia ou desaparece por completo – altura em que Perséfone está no submundo – que são seguidos pela Primavera e pelo Verão, épocas de abundância, fruto da reunião alegre entre mãe e donzela. Este era um dos mitos mais importantes da Grécia antiga, e foi celebrado, já pelo início da Cristandade adentro, através dos Mistérios de Elêusis. Muitos dos seus rituais e celebrações eram invisíveis e secretos, outros, porém eram celebrados abertamente perante os olhos da comunidade.

Simbolicamente, o mito também nos fala dos “invernos” das nossas vidas, as descidas ao submundo e às suas cavernas antiquíssimas, paisagens iniciatórias misteriosas, que falam de dissolução e morte. Nos dias de hoje, é fácil olhar estas passagens como alturas indesejáveis. Quão melhor é a primavera com a sua explosão de vida, de cor, de energia, de abundância e alimento. Quão melhor é desfrutar do calor do sol, dos dias maiores, da leveza que a vida quotidiana parece adquirir nessas alturas!

E, porém, é a gruta que, convidando a dissolução, a morte e a entrega ao chão, permite depois essa mesma fertilidade primaveril. É na escuridão da gruta que podemos deixar-nos cair e sentir. Como os ursos, podemos hibernar, dormir e sonhar. A gruta é o espaço da morte e o espaço do útero. É o espaço do silêncio e da espera.

Desde sempre que as grutas são lugares de vida e de morte, lugares onde nos recolhemos para proteção, para devoção e para ritualizar as iniciações das nossas vidas, tal como as mitologias de todo o mundo nos contam. Cavernas de escuridão profunda e temperatura constante, cheias de labirintos, rios e lagos subterrâneos, as grutas são um ventre que nos evoca a possibilidade de renascimento, precisamente porque nos dá o tempo de paragem necessário para recolhimento e poupança de energia, para deixarmos cair o que já teve o seu tempo e serviço e, assim, criar espaço fértil para um novo despontar. Não são espaços confortáveis, nem tempos agradáveis, aqueles que passamos nas grutas do submundo, o que por si só, não é nada atrativo para a nossa cultura moderna, focada apenas naquilo que dá prazer, que é fácil e fluido. Dissociados da dança cíclica que é a vida, procuramos sempre um único ponto de vista, apenas um dos lados da multidimensionalidade da existência. Por isso, achamos que podemos estar sempre em atividade, sempre exuberantes e produtivos, sempre em modo Primavera-Verão.

 Numa outra camada, o mito fala-nos da experiência de Perséfone no mundo inferior: raptada e violada por Hades, a donzela é aliciada a permanecer ali pela oferta de uma romã, cujos bagos ela come, numa analogia à descoberta da sexualidade, tornando-se assim na Rainha do submundo. Embora regresse aos braços da mãe na Primavera, a verdade é que nunca mais é vista noutro lugar que não no Hades. A sua experiência de perda e de dor, torna-se também naquilo que, necessariamente, lhe concedeu o seu lugar. De facto, as experiências mais duras da vida são momentos de iniciação no submundo, são raptos e violações do nosso ser mais inocente que nos transformam e modificam para sempre, trazendo-nos uma maturidade e soberania pessoal que não teriam sido adquiridas de outra forma. Do ponto de vista da nossa personalidade, são vivências que nunca teríamos escolhido e que não queremos voltar a viver; do ponto de vista da nossa alma – e o submundo era, na mitologia grega, o mundo das almas – são símbolos de dissolução e renascimento, momentos imprescindíveis em que voltámos a nós mesmos.   

Simbolicamente, o submundo e as suas cavernas são o reino onde passamos as crises dos invernos das nossas vidas, lugares com um tempo próprio, onde vivemos as nossas iniciações de morte e de renascimento independentemente dos nossos desejos ou opiniões pessoais. Mas os invernos sazonais, os meses de calendário em que dias e noites são frios e desconfortáveis, lançam-nos um convite à gruta. Um convite que pode não ter a profundidade de Perséfone, mas que certamente nos fala da sacralidade imanente de Deméter. Porque também o grão precisa do ventre escuro da terra para brotar, verde e farto, na Primavera. E é desde aqui que sinto como preciso da gruta escura, do tempo lento e orgânico, das noites longas de sono e de sonhos, para me reerguer fértil. Quão necessário é o espaço e o silêncio para permanecer, para cuidar do ser e para recordar o que é ser-se. Só assim é possível, realmente, florescer e frutificar.

 


Artigo publicado na Revista Vento e Água nº 43



PATRÍCIA ROSA-MENDES
FORMADORA – ÁREA TERAPIA

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