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Entrar na escuridão

“Entrar na escuridão com uma luz é conhecer a luz. / Para conhecer a escuridão, entra escuro. Vai sem ver, / e descobre que também a escuridão, floresce e canta, / e é percorrida por pés escuros e asas negras.”  

Wendell Berry

(minha tradução livre)

 

Lento e baixo vai o Sol, que se esconde a cada dia, cada vez mais cedo, cada vez mais tempo. Este é o tempo da Lua, senhora da noite, deusa da escuridão. Este é o tempo da pausa, da descida, da interiorização. A terra inspira, profundamente, guardando como um dragão, toda a sua energia. Em cada buraco, em cada toca, na terra mais escura, dorme toda a vida, esperando escondida, dormente. Faz-se noite, enquanto chove. Faz-se dia, no vento que se levanta. E, uma vez mais, eis que todos descemos.

 

Todos os anos chega o Inverno. Todos os anos os dias ficam curtos, o sol esconde-se, chega o frio, a chuva, o vento. Todos os anos chega a altura de parar. Ainda que numa sociedade onde o conforto está presente e as agruras do tempo são largamente compensadas pela tecnologia, a vida torna-se mais difícil, mais desafiante, nos seus pequenos pormenores diários. Deixamos de saber honrar os ciclos, e acreditamos, cada vez mais, que a “forma certa” é a constância de energia: sempre em movimento, sempre fazendo, sempre motivados e bem-dispostas. Sempre igual. Sem parar. Para chegar a algum lado e conquistar alguma coisa. E, depois, vem o Inverno. E os nossos corpos pedem mais descanso. As nossas emoções começam a contrair-se. Talvez surja a tristeza, a melancolia, a saudade. E quão errado tudo isso parece! Certamente é porque não nos distraímos o suficiente. Ou porque não temos qualquer coisa que, claramente, nos faz falta. Seja como for, a culpa é nossa, claramente. Obviamente, há algo a ser controlado que ainda não foi. E continuamos a tentar controlar mais. A tentar distrair-nos. A consumir mais, se possível. Descer nunca foi fácil. Nada sei de como se vivia em outras épocas, ou culturas, apenas posso imaginar, mas ultimamente dou por mim a pensar que, seja em que época for, ou de que forma for, o ser humano resiste sempre à dor e ao sofrimento. Talvez a diferença seja que, noutros tempos, sabia-se que a dor era uma parte integrante da vida, e que atravessá-la era um mistério que nos tocava a todos, numa ou noutra altura. Saber isto, estar consciente de que era o esperado, talvez ajudasse nesta passagem.

 

O que está fora e o que está dentro – natureza e psique – são dois lados de uma mesma moeda, e espelham-se, frequentemente. As estações que vão desfilando no calendário, sob o nosso olhar, não só nos moldam a existência quotidiana como também vão desfilando no nosso mundo interno. Temos primaveras florescentes no desabrochar de sentimentos, de vontades e sonhos. Temos verões abundantes nos momentos em que celebramos e desfrutamos, e belos outonos em que sentimos equilíbrio e gratidão. E temos invernos escuros, onde tudo parece estar morto, onde sentimos a vida em perigo, e nada podemos fazer a não ser encolhermo-nos e aguardar. Cada uma destas estações é a própria ciclicidade a acontecer, a demonstração de que a vida não é uma linha recta, antes uma constante espiral de inícios e fins, mortes e renascimentos, ciclos dentro de ciclos. E o inverno convida a um encontro com tudo o que é mais negro e sombrio. Fala-nos de todas as vezes que nos deparámos com a possibilidade de morte, com a escuridão de forças selvagens que desconhecemos, com os medos que nos engolem e os todos os outros demónios que nos assolam. Convida-nos a descer a grutas escuras, e activa o medo instintivo do animal que somos. Sempre foi assim, e talvez sempre assim seja.

 

O que nos tem acompanhado ao longo das noites escuras, de era em era, de civilização em civilização, de cultura em cultura, são as estórias. Quando a luz se esconde, lá fora, acende-se a fogueira, e em círculo, contamo-las uns aos outros, vezes sem conta, repetindo-as, com algumas (ou muitas) diferenças, mas sempre com a mesma trama. As estórias são as migalhas de pão dos nossos Hansel e Gretel, ajudando-nos a encontrar o caminho pela floresta densa e escura. Há muitas estórias sobre personagens que são confrontados com estas descidas, normalmente situações violentas que lhes acontecem. E há também uma antiquíssima estória sobre uma deusa que escolheu, ela própria, fazer esta descida para o reino das sombras.

 

Cada estória fala de um ritual de passagem, uma iniciação. Afinal, é isso que cada descida é: tal como as plantas que perdem as suas folhas e permanecem, nuas, vulneráveis, perante os rigores do clima; tal como os animais que se escondem nas suas tocas, enroscados, ou vagueiam, jejuando até que o alimento regresse na primavera… cada descida, cada inverno, é uma iniciação, um encontro com a mortalidade, um deixar cair do que já não serve. De cada vez, somos levados ao mais básico, ao mais nuclear, despindo cada uma das camadas acessórias que achamos serem fundamentais, para ir ao encontro da essência do que É, absolutamente vulneráveis, em total igualdade com qualquer outro ser vivo. E, uma vez aí, permanecendo na escuridão, no silêncio avassalador do Submundo, roçamos o mistério da morte e da vida. Não adianta fugir, por muito que o desejemos, pois quanto mais fugirmos, quanto mais tentarmos evitar, mais o convite se fará presente. Só permanecendo podemos sair. Só ficando poderemos atravessar.

 

Em cada iniciação, está também presente um guia. Em cada caverna, há a luz de uma chama. O que nos guia, é a esperança. A chama, é a fé. No fundo do poço, não há outro caminho, senão subir. Na noite mais escura, surgirá a luz. Trémula, bruxuleante, ainda assim, presente. Mas não a conseguiremos ver se não nos deixarmos cair e ficar. Afinal, o que é uma pequena chama numa loja de candeeiros? O grande segredo das iniciações sempre foi esse: sem chegar ao fundo, sem tocar na ferida primordial, a luz da candeia não se acenderá. Sem passar pela morte, não haverá renascimento. Sem viver o inverno, nunca teremos a primavera. Só quando percorremos todo o ciclo podemos confiar que o ciclo não tem fim. Só repetindo a vida, dia a dia, momento a momento, nos seus pequenos actos, nas suas constantes propostas, podemos perceber que a ciclicidade é a nossa garantia de vida, é ela que nos salva. Mas a fé só se ganha vivendo, repetindo, persistindo. E, viver esta repetição com resiliência é, afinal, amor, a pedra basilar de toda a existência. Só o amor tem o endurance para persistir, uma e outra vez, confiando. Se a fé é o nosso guia, o amor é a nossa armadura, a pele e o pelo que nos protege e que nos aquece, que mantém viva a chama do coração.

 

A noite escura é inevitável, seja ela a natural progressão das estações, seja o mistério das experiências humanas. O conforto do verão ou a energia sonhadora da primavera nunca estão garantidos, são apenas passageiros, e na nossa condição de humanos, teremos sempre de lutar para manter vivos os princípios da Vida. Possamos nós acalentar nos nossos corações a chama viva da fé, e viver tão flexíveis, porosos e acolhedores como o amor nos ensina e recorda. Possamos, a cada Inverno, manter a candeia que ilumina os nossos passos, levando-a com compaixão. 

 

 
 

Artigo publicado na Revista Vento e Água nº 48

 

PATRÍCIA ROSA-MENDES
FORMADORA – ÁREA TERAPIA

 

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