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Descendo para a casa da Avó Aranha

 

“Nada é gerado de nada. Cada uma das nossas estórias começa no meio de uma estória de outrem. E, porque todos os inícios são também fins, algo tem de morrer na floresta de modo a abrir espaço para que as nossas sementes brotem.”  

Ian Heginworth

 

Na antiga cidade de Cólofon, na antiga região da Jónia, existia uma princesa de seu nome Aracne. Tinha uma enorme paixão pela tecelagem, e desde muito jovem ocupava todo o seu tempo livre a aprimorar este seu talento. De tal modo que decidiu um dia lançar-se no labor de tecer uma grande tapeçaria que ilustrasse os amores e desamores dos deuses do Olimpo. O seu ardor pela arte, a sua dedicação e persistência resultaram numa peça de arte tão bela que todos vinham admirá-la. Em breve, a palavra passou de uns para outros e chegou aos ouvidos de Atena, a deusa que era patrona das artes femininas, em particular do fio e da tecelagem. Também ela era uma tecelã exímia, e ouvindo falar de uma tal peça, feita com tanto esmero e cuidado, ficou curiosa, e também invejosa por haver alguém que parecia ser capaz de rivalizar com ela. Decidiu então ir ver, por si mesma, que obra era esta, e quem era esta mulher capaz de a fazer. Quando chegou ao palácio real de Cólofon e se deparou com a magnífica tapeçaria, Atena ficou boquiaberta. Não só pela qualidade da peça, finamente tecida e cujas imagens pareciam pintadas, como pelas histórias que contava, histórias de amor e paixão, histórias de sedução, e também de rapto e de subjugação. Ali estavam expostos não só os amores dos deuses, como também o seu lado negro, o desejo que não conhecia limites e a noção de privilégio que os fazia conquistar e dominar qualquer ser. Há quem diga que foi a única vez que Atena sentiu inveja… eu creio que, com essa inveja também havia zanga, pois Aracne foi capaz de expor a nu a vida dos deuses, afrontando-os. O certo é que a deusa teve um tal acesso de raiva que destruiu totalmente a bela tapeçaria e fez com que Aracne, aterrorizada, fugisse e se enforcasse numa árvore. Atena, porém, seguiu-a e ao vê-la debater-se transformou Aracne no animal que mais detestava, a aranha, e a corda numa teia, o que permitiu à princesa fugir e refugiar-se na árvore.

A aranha é a grande tecedeira, teceu mundos e teceu estórias, e por isso é vista por muitos povos e culturas como a Avó ancestral, a grande Criadora. Elaborando com cuidado as suas teias, ela vai unindo um fio ao outro, criando uma rede subtil e, porém, altamente resistente, que se assemelha à própria rede da vida. O trabalho de tecer parece ter estado sempre nas mãos das mulheres, talvez por serem também elas criadoras, nos seus úteros, porta de entrada para a vida de todos e cada um de nós. Enquanto energia, o feminino é também essa capacidade de sonhar, idealizar e trazer à luz do dia as aspirações internas. Nos antigos teares, viam estes povos a imagem do próprio cosmos, uma imensa rede onde cada existência estava ligada e era suportada pela trama lançada entre as duas traves, a de cima e a de baixo, o céu e a terra. A aranha, fiandeira, era como as mulheres que elaboravam os tecidos, trabalhando entre trama e fio, lançava novas vidas e criava novas estórias, enquanto também as consumia e destruía, imagem fiel da própria existência. É interessante, esta ligação entre estórias e fio, ambos como metáforas de criação, estrutura, desenvolvimento e fim. Literalmente, somos pequenos fios na imensa tapeçaria da vida, e somos estórias, que começam noutras estórias, todas elas também uma infindável rede, tecida desde há gerações. Tecer é contar estórias, e contar estórias é como ir tecendo. E, no fio como nas estórias, acedemos a uma outra dimensão da realidade, um lugar de não-tempo, um espaço onde podemos passar ao mundo das imagens, onde existem todas as estórias jamais contadas e por contar e escutar as vozes ancestrais.

Aracne teceu uma estória feita de pequenas estórias, num acto de magia que revelou o que estava escondido à vista de todos, e por isso mesmo, afrontou Atena. Não só pelo seu dom, mas também por ter tocado nessa magia e por ter mostrado a face oculta dos deuses. E Atena, a deusa mais patriarcal de todo o panteão grego, a que não tinha sido gerada pelo feminino, tendo nascido da cabeça de Zeus, não podia aceitar que uma mera mortal se elevasse a estes píncaros, que tecesse estas estórias. Porque as estórias são poderosas, e subtilmente revelam muito mais do que os ouvidos distraídos escutam. E também por isso são perigosas. Uma boa estória agita a memória antiga em nós, fá-la subir à superfície do ser e aí ficar, purgando o corpo, abrindo o olhar, soltando a voz. Uma boa estória é medicina, uma boa estória é como uma anciã que já não tem medo de nada.

Acredito que precisamos de reencontrar a Avó Aranha e a sua teia criadora, para nos recriarmos e recriarmos a nossa forma de vida. Precisamos de aceder à casa de todas as estórias, e de aí permanecer um tempo, escutando apenas. Escutando o vento, as pedras, as águas. Escutando as canções dos pássaros, o passar das estações, o silêncio profundo. Escutando o bater do coração, os fios da vida entrelaçando-se. Tecendo a nossa vida com cuidado e atenção. Precisamos de momentos de não-tempo e de não-espaço, de escuridão e de paragem. Momentos e épocas, como esta, onde apenas há escuridão, o tempo passa devagar, nada é visível e tudo se mantém em silêncio. Momentos como este, onde tudo parece morto, porém, a vida germina, lentamente. Ganhando forças e impulso para o que a espera mais à frente. Não há tempo como o de agora para descermos às profundezas e nos permitirmos ficar, morrendo simbolicamente, abrindo espaço ao que há de vir, outra forma de vida, só possível através do portal da morte.

São momentos em que a vida é tecida por esses fios quase invisíveis da Avó Aranha, que apenas a luz do dia irá mostrar claramente. A vida sonha-nos em forma de estória e nós vamos sonhando as nossas estórias e continuando a tapeçaria da vida. Para aqueles de nós que já experimentaram trabalhar com o fio – no tear ou nas agulhas – é curioso como o seu movimento hipnótico nos leva imediatamente para o não-tempo e para a escuta profunda, para esse mundo onde as imagens se soltam com facilidade e nos chegam como pedaços de estórias. Todas as estórias querem chegar até nós e ser vistas, e todas pedem para ser contadas. Ser contado é vir à existência, tomar corpo e ocupar o espaço que lhe pertence. E tudo o que está vivo segue este impulso. E toda a vida se origina neste espaço de vazio fértil, onde o tempo é o da espera.

Para muitas culturas antigas, esta época de morte era o início de um novo ciclo, de um novo ano, porque a vida começa sempre na profundidade da terra, no reino dos mortos. As sementes eram enterradas nos fossos e perto dos mortos para serem por eles fertilizadas, para ganharem as qualidades dos ancestrais e poderem renascer, na época do sol e do calor, plenas de força. Da morte, nasce a vida. E a cada renascer da vida, é necessário que ela traga em si, a memória ancestral da ciclicidade, a força de quem veio antes, a fé no Mistério. As estórias são essa memória, acompanhando-a, para que não se esqueça nunca do que é importante, para que se lembre sempre do que é real e verdadeiro.

Talvez o fim da estória de Aracne ainda guarde esta certeza das tradições ancestrais da Velha Europa, a de que a Vida não tem fim, embora todas as suas formas estejam em constante mudança. Apesar da ira, Atena acaba por salvar Aracne da morte, transformando-a numa aranha, e dando-lhe assim a possibilidade de uma nova vida. Também as estórias nos dão possibilidade de uma nova vida, sobre outra forma, numa outra realidade, e nesse sentido, também podem ser uma promessa de salvação. Possam os nossos sonhos ser fios de magia, contando as novas e as antigas estórias, e possamos nós entregarmo-nos à Vida, para sermos tecidos em reverência.
 

Artigo publicado na Revista Vento e Água nº 47

 

PATRÍCIA ROSA-MENDES
FORMADORA – ÁREA TERAPIA

 

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