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A colcha

A colcha continuava a ganhar forma. Nas mãos dela, que agora eram brancas, velhas e enrugadas, a peça tecida, cozida, recortada e bordada ia-se enchendo de vida e de uma certa excentricidade, que só uma mulher que passa pela experiência do tempo se permite.

Nunca tivera intenção de criar uma colcha. Testemunhara tantas e tantas vezes o manusear das agulhas nas mãos da sua avó, em finais de dias intensos, que intuíra na pele a capacidade de sanação pelo labor das mãos.

Por vezes, nas mãos da anciã que a criara, as lãs metamorfoseavam-se em intrincados padrões através de uma tranquilidade que roçava o transe. Noutras alturas, porém, ela sentia a incerteza, as emoções tempestuosas que exalavam daquelas mãos. As lãs, as agulhas e o manusear transformavam-se num caldeirão de intensidade, como uma poção que necessita de ser mexida incessantemente para nascer.

O padrão das almofadas, das mantas e das tapeçarias exalava as palavras sem voz daquele feminino que a criara, sem espaço para gritar, mas expressando cada instante de vida através das mãos.

Aprendera, por isso, o valor das linhas, das agulhas, dos padrões e do silêncio. Começara cedo, também. Primeiro, pela vontade de seguir o modelo da avó. Criar coisas belas e intemporais. Encontrar um lugar onde os olhos se perdessem no padrão, como se vivesse entre mundos.

Mas começara aquele labor no dia em que lhe descera o sangue pela primeira vez. Como num ritual, a avó pusera-lhe nas mãos um novelo vermelho-vivo e dissera-lhe:

– Para que não te esqueças de quando te tornaste mulher.

E, meio trémulas, as mãos haviam iniciado um padrão simples, que a tinha feito esquecer os desconfortos do corpo e os lutos da infância. E que haviam trazido uma espécie de marco, de ritual à sua estória. Estava ali, naquele pedaço tecido, uma parte de quem era.

Foi buscar os pedaços da sua meninice para juntar ao trabalho. E coseu um botão do seu vestido preferido, junto de um pedaço do vestido da boneca com que mais brincara. Alguns fios do xaile amarelo da mãe e um pedaço de feltro do chapéu do pai.  Um pedaço da coleira do seu cão. Pequenas pedrinhas ou folhas que apanhava no bosque. Uma pulseira que partilhara com a melhor amiga, até esta deixar de lhes servir.

Costurou pedaços de passado aos padrões do presente, criando uma espécie de manta estranha, rugosa e meio mágica.

Alturas havia em que o trabalho ficava guardado no baú de madeira durante tanto tempo que mais parecia esquecido. Porém, quando precisava de se encontrar, de acender uma candeia no caos aparente da sua existência, estava ali a sua velha colcha.

E esta foi crescendo em tamanho e estranheza. Uma pedra da lua que arranjara para a recordar do primeiro beijo, oferecido numa noite de lua cheia, com cheiro de terra molhada. Um pedaço do véu do seu vestido de noiva. O primeiro caracol da cabecinha extraordinária da sua filha. Uma tira da manta guardada para o bebé que lhe morreu no ventre, levando consigo uma parte do seu coração.

O trabalho inacabado na avó, que partira num sono profundo, num equinócio de outono, como Perséfone a descer ao submundo.

Cosera aquele pedaço de tecido por entre lágrimas e memórias, preservando em cada ponto que dava todos os legados daquela anciã de mãos rugosas e sorriso fácil, que tecia as suas dores em silêncio, permitindo aos padrões os gritos que nunca dera.

Ah, mas ela não se restringira ao silêncio. Encontrara em cada ponto tecido as emoções, o sentir intenso e borbulhante de ser mulher e expressara-o sempre, por entre laivos de medo e autenticidade. E depois, simbolizava-o na sua colcha que já ganhara bordados e imagens vivas da sua existência.

Enquanto cosia as pérolas que lhe traziam o lugar da anciã, expressando o tempo em que o sangue deixara de lhe descer, ensinara as suas netas a pegar nas agulhas e nas linhas e a expressar em padrões aquilo que as palavras não tinham espaço para contar.

E, conforme o tempo corria e as linhas do seu rosto ganhavam os mesmos vincos intrincados do seu labor, pensou que talvez aquele tecido tivesse deixado de ser uma colcha há muito tempo. Talvez nunca fosse esse o seu propósito. Era bem provável que aquele retângulo extravagante e imenso fosse mesmo um objeto mágico e um dia, quando as suas netas fossem crescidas, pudessem continuar o trabalho.

Ou, quiçá, se deitassem sobre a cama decorada com uma estranha colcha e sonhassem com uma avó com olhos de sábia, um xaile amarelo, um chapéu de feltro. Um cão que corria por entre o bosque e uma boneca que fora imensamente amada. Talvez sentissem a força de um beijo ao luar, o amor por um caracol louro de menina ou as entranhas desfeitas por um bebé que não nasceu.

Talvez escutassem gritos e gargalhadas, danças e lutos, lágrimas, lugares de candeia e viagens por entre os mundos. E se permitissem viver por inteiro, conhecendo o poder das mãos e do silêncio, das lãs e da experiência extraordinária do tempo.

 

 

 

 
 

Artigo publicado na Revista Vento e Água nº 47

 

ÉLIA GONÇALVES
DIRECÇÃO CRIATIVA E DE PROJECTOS

 

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