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Agosto da colheita

“Senhor: é tempo. O imenso verão passou. Cobre agora os relógios de sol com as tuas sombras, e nos prados deixa que o vento corra livre.

Ordena aos frutos que inchem na árvore e na videira; concede-lhes mais uns dias quentes e transparentes, e incita-os a cumprirem-se, e instiga a doçura final no vinho pesado.”

Rainer Maria Rilke, Dia de Outono

(Tradução livre)

Chegou e passou o mês de Agosto, aquele que muitos de nós dedicam às “férias grandes”, uma paragem mais longa para descansar e retemperar, coincidente, para nós em Portugal, com a época de maior calor e, por isso mesmo, de usufruir das praias, rios e albufeiras em busca de refrescamento. Agosto é o oitavo mês do calendário gregoriano, o calendário de medida de tempo mais usado no mundo. Foi assim chamado em honra ao imperador romano César Augusto, sobrinho neto e filho adoptivo de Júlio César, que começou o seu consulado nessa época do ano, dando fim à guerra civil que grassava pelo povo. À época, porém, o calendário vigente era o romano, que foi sofrendo diversas alterações, até chegar a um ponto de confusão tal que Júlio César chamou um conhecido astrónomo grego da escola de Alexandria (Sosígenes) para encontrar um sistema que, de alguma forma, estivesse alinhado com o ciclo das estações. Daí chegou-se a um calendário solar, ao qual se chamou Juliano (de Júlio César), e que continha os nossos conhecidos ciclos de quatro anos de 365 dias e um ano de 366, e com a alternância entre meses de 30 ou 31 dias. Por razões religiosas relativas à celebração da Páscoa, este calendário foi posteriormente alterado e adaptado, tendo-se chegado ao calendário gregoriano (do papa Gregório XIII) que hoje conhecemos e nos guia.

Calendários e debates matemáticos à parte, o ser humano sempre se guiou pelos ritmos biológicos: os seus e os da sua relação com a Terra. Desde sempre a lua, o sol e as estações são observados com dedicação e reverência, permitindo assim medir a progressão do tempo e dos ritmos. Se, por um lado, e nalgumas circunstâncias, é importante ter indicações precisas relativas a esta progressão, por outro, a vivência que fazemos do tempo é muito mais flexível e alinhada com ritmos orgânicos. Durante séculos, o modo de vida foi essencialmente agrário, e na nossa perspectiva europeia, esta época era a altura do ano dedicada ao início das colheitas: depois da explosão de vida da primavera seguira-se o amadurecimento, e surgia agora, no verão, toda uma imensa abundância vegetal e animal propiciando alimento e motivos de celebração.

Nas tradições celtas, por exemplo, esta época do ano era dedicada ao festival do deus Lugh (Lughnasadh), um deus solar, herói das lendas que compõem a mitologia irlandesa. Depois de uma das batalhas em que esteve envolvido, tendo capturado um deus inimigo, Lugh consegue convencê-lo a partilhar os seus conhecimentos sobre sementeiras e colheitas, ganhando assim um acervo de sabedoria para o seu povo que havia permitido um trabalho agrícola mais eficaz e, como tal, uma maior abundância. Era por tudo isso conhecido como “o luminoso de mão habilidosa”, e todos estes seus talentos e dádivas eram celebrados na sua festa. Mais tarde, com o declínio das antigas tradições e com crescimento da cristandade, a festa de Lugh passou a ser o festival da missa do pão (loaf-mass), referindo-se à colheita e morte do Rei do Milho. Para as tradições antigas agrárias, a fertilidade da terra está intrinsecamente ligada à fertilidade dos povos, e dessa forma, sempre foram celebrados rituais para assegurar a abundância das colheitas. Também Lugh se casou com a Deusa, e também ele demonstrou o ritual de sacro-ofício que envolvia a sua morte para que a vida continuasse. Em época de colheitas, fosse o milho, o trigo ou a uva, todos morriam para renascer depois, sobre forma de pão ou de vinho, todos eles símbolos de vida. Ao longo do mês de Agosto, sucediam-se várias festas e celebrações que honravam os deuses masculinos e as deusas mães, pela sua capacidade de doar a vida oferecendo-se à morte. Muitas delas trazem o elemento do fogo (o calor do sol) que amadureceu os frutos e os cereais, e outras dedicam-se à água, aos seus banhos e purificações, à sua capacidade de evocar a memória e de nos conectar com o imenso todo, do qual somos parte. 

Embora para muitos de nós as colheitas não nos digam nada, já que encontramos sempre disponíveis nos nossos supermercados qualquer produto ao longo de todo o ano, ela continua a fazer-se sentir, não só pela época de celebração, de reunião e de paragem que ainda hoje vivemos em Agosto, como porque essa paragem também simboliza uma conclusão, uma colheita simbólica. É agora que fazemos o interregno maior na rotina das nossas vidas, antes de regressar ao trabalho ou à escola; embora ainda estejamos no Verão, começamos já a notar subtis alterações na luz, no mundo vegetal, e até em nós mesmos. O declínio da estação quente – expansiva, luminosa, solar – é agora perceptível, e se estivermos atentos, podemos sentir os sinais do corpo. Aproxima-se um final de ciclo no mundo natural, mais notório do que o final ditado pelo calendário civil, em Dezembro. É, pois, uma época de colheita interna, em que tudo aquilo que semeámos, dentro de nós, e nas nossas vidas, com ou sem consciência, do anterior ciclo até agora, deu fruto e está pronto para ser colhido.

Sabendo que toda a colheita implica uma morte para que possa haver um renascimento, saberemos também que nem sempre os primeiros frutos da colheita são doces e sumarentos. É possível que a paragem traga consigo um confronto com tudo o que tentamos esquecer ou reprimir até aqui, e que o silêncio tórrido das tardes de verão nos encha de angústia. É possível que seja difícil evocar aquilo que é mais sagrado numa época de colheitas: a gratidão pela vida. É possível que nos surjam escolhas e consequências, ou que sintamos o desespero das oportunidades perdidas. Talvez os frutos da nossa vida nos caiam no colo, já podres ou ainda demasiado verdes, e nossa primeira colheita seja sombria, aquela que nos fala das nossas fragilidades, dos nossos erros e das nossas ilusões. Pode ser que nesta colheita tenhamos de oferecer algo que até agora nos foi importante, para alcançar um bem maior, num ritual de sacro-ofício. Mas é nestas mortes que assenta a vida, e de que depende a nossa própria fertilidade interna. Tal como num campo, também em nós há frutos de todas as espécies, em todos os graus de maturação e isso não é um erro, é diversidade, prova da riqueza do nosso ecossistema interno. Para desfrutar dos frutos, porém, é preciso podar, cortar, devolver à terra o que irá decompor-se, fermentar e alimentar um novo ciclo.

Uma das últimas colheitas desta época, é a das uvas, que mais tarde serão pisadas, fermentadas e darão o vinho, bebida tida como sagrada desde que a planta é cultivada e usada pelo homem. O seu ciclo de vida implica uma série de mortes e renascimentos, num verdadeiro processo alquímico que, não terminando no vinho em si, volta a surgir metaforicamente naquilo que a bebida pode evocar no ser humano. A mitologia associa Dionísio à videira e ao vinho. E também aos processos de entrega às forças selvagens e complexas que regem a vida e a morte. Este é o deus mais antigo, complexo e incompreendido do panteão grego, menosprezado pela visão patriarcal e reduzido a um ébrio instigador da loucura e dos excessos. E talvez isso demonstre como sabemos tão pouco sobre viver de uma forma flexível e adaptativa, abraçando a diversidade de tudo o que temos dentro, acolhendo a colheita dos nossos frutos e não esquecendo de celebrar o tanto que somos.

 
 

Artigo publicado na Revista Vento e Água nº 46

 

PATRÍCIA ROSA-MENDES
FORMADORA – ÁREA TERAPIA

 

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