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As canções do fim do Verão

“O homem viajou para longe e ouviu e viu muitas coisas estranhas nas suas viagens. Soube que o amigo e o inimigo não passam de duas faces da mesma moeda. Que o caminho que pensamos ter escolhido há muito, constante e imutável, direito e extenso, pode alterar-se num instante. Pode ramificar-se e levar o viajante a lugares muito para além dos seus sonhos mais incríveis. Que há mistérios que estão para além da compreensão humana e que negar a sua existência é passar a vida num estado semiconsciente.” 

Juliet Mariller

 

Os meses limiares trazem-me sempre um ponto de mistério, uma porta de entrada para o “mundo de baixo”, o lugar dos mitos e das coisas antigas, o sussurro das histórias que nos forjam e que teceram o mundo. Setembro é um destes meses. O final do verão, quando os últimos raios áureos do sol oscilam nas copas das árvores, pressinto as danças bamboleantes das sombras que lá se encontram.

Nesta época de transição, a natureza veste-se com trajes de outono, um manto de folhas douradas e vermelhas que forra o chão das florestas antigas. O vento murmura segredos ancestrais entre os galhos, enquanto as árvores parecem murmurar melodias druídicas. O ar está carregado de magia, talvez um eco dos rituais sagrados realizados sob a sombra dos carvalhos centenários. 

Perséfone é convidada a abandonar as suas vestes de donzela e descer ao submundo para – numa metamorfose única e plena de mistério – tornar-se soberana. Ariadne, senhora do labirinto, oferece-nos generosamente o fio que nos guiará nas encruzilhadas do tempo e das estações da alma, desafiando os nossos medos e anseios, abraçando as histórias não contadas e refletindo sobre a beleza e a sabedoria da escuridão.

Abre-se em mim um portal para um reino mágico e misterioso. Não é um espaço de fantasia, nem propriamente um lugar material. É, também ele, um espaço liminar, entre passado e presente, o que está dentro e o que está fora, entre uma aparente “realidade” e um lugar intemporal onde me sinto em casa.

As histórias, os sonhos, os mitos e os arquétipos dançam-me na pele, da mesma forma que os ventos e as chuvas são convidados à dança dos elementos, que as sementes caem ao chão e as folhas mortas nutrem a vida que chegará.

Os convites do sol tornam-se amenos e delego-os para outra altura. As águas, onde ainda há pouco mergulhei, trazem uma carícia de despedida, um até já, uma memória. E as histórias, teço-as na vida, por entre colheres de pau que mexem tachos, cheiros de especiarias e fermentados. Por entre os fios que me aguardam, e aos quais sorrio, ansiando já a carícia do Outono e o tempo das criações.

As caminhadas regressam, sem o sufoco do verão quente e, nos meus passos, o mundo abraça lugares secretos, fugidios e intemporais. Aqui, na senda profunda do espaço entre mundos, à beira de um tempo escuro que não chega, ainda, mas que espreita, quase consigo escutar o canto das pedras e das mouras, e as melodias cantadas pelas águas correntes dos sulcos da terra. Aqui, na penumbra entre mundos, mergulho no abismo de mim mesma, onde sonhos e símbolos se entrelaçam como as raízes das árvores antigas. Aqui, as minhas histórias atravessam-me as veias e contam-se a si mesmas sob diferentes versões.

Elas estão nos livros que me chamam para ser lidos, nas folhas brancas onde a caneta quer pousar e trazer à vida suspiros por nascer. Estão nas recordações que se movem e transformam e nem sempre são iguais. Estão na própria vida que me toca e me acende chamas, desperta lágrimas e memórias de coisas que não vivi, mas que me habitam.

Os tempos limiares exigem que me refaça, que me forje de novo, talvez em busca de novas partes e abandonando outras que já não sou. Estes pedaços, míticos, épicos, plenos de voz, querem ser refeitos, cortados, colados e tecidos em novas canções.

Serve-me, para tal, o fio de Ariadne, me ancora quando percorro labirintos em busca do centro, que é, tantas vezes, o mesmo lugar que a saída. Serve-me o silêncio quando contemplo e cheiro a vida na terra molhada e divago por entre lugares de impermanência.

Serve-me a alma que, nestes momentos, acaricia em suavidade as águas profundas do Lethes, o rio do esquecimento, escolhendo o que ficar e o que ir, o que importa aqui, entre os mundos, e o que desvanece em pedaços que já não me cabem.  

Que possam ser honrados, estes momentos de transição, num abraço inteiro à ciclicidade.  Que possamos mergulhar no mistério que somos, criar-nos em mito e escutar as canções mais antigas. Elas estão nos ecos e sussurros, atrás de véus, nas folhagens e no vento. Caem com as gotas da chuva e mostram-se por entre sonhos, devaneios ou quimeras.

Que possamos ouvir as passagens. Pois que as velhas histórias estão aqui para ser escutadas, nem sempre por vozes ou palavras.

 

 

 

 

 
 

Artigo publicado na Revista Vento e Água nº 46

 

ÉLIA GONÇALVES
DIRECÇÃO CRIATIVA E DE PROJECTOS

 

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