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Das cinzas e dos inícios

“Mas toda a transformação requer uma descida a estas cinzas e não há transformação mais premente do que a Primavera. Há momentos das nossas vidas, tempos de transição, em que encarnaremos as criaturas do abismo e, para nosso desespero, nos encontremos de volta às cinzas. (…) Mas não há inícios sem elas. Aqui começa a alquimia da Primavera.”

Ian Siddons Heginworth

 

Neste despontar de dias claros e cores sublimes, o paradoxo desperta e leva-me a espaços de silêncio e ruído, contemplação e anseio. A cada renovação, deparo-me com a difícil tarefa de abandonar quem sou, perder identidades e certezas. Perder certezas tem sido a minha âncora, de dor e esperança, de encontro e despedida. 

Estes dias levam-me a um cansaço antigo, movimentos tão extremos que mal cabem dentro de mim e uma carência imensa de quietude e tranquilidade. O corpo oscila entre a alegria do sol e da explosão de vida que me enreda e partes que requerem tempo e descanso e, tendo sobrevivido ao Inverno, não sabem se conseguem florescer na Primavera.

Por vezes choro, porque trago dentro janelas que nunca se abriram, mas de onde antevi as flores e o leve esvoaçar das andorinhas. Dança em mim a sensação de tragédia no potencial, no que poderia ser, naquilo que a mente, a imaginação, a fantasia, ou mesmo a alma me permitem espreitar. Quem seríamos nós se não fossemos quem somos?

Tenho a bênção de não me arrepender de muitas coisas na vida, de caminhar firmemente por onde sou convidada. De encontrar luz nos erros, mergulhar do cimo dos penhascos, sabendo que a dor dos ossos partidos nem sempre supera o êxtase do voo.

Mas, ainda assim, doem-me os ossos e a efémera sensação de que me poderiam ter crescido asas. Ainda assim, questiono sempre que desconstruo, sustenho-me perante cada despedida. Mesmo acreditando que não nos podemos despedir do que nunca existiu. E, no entanto, assim é.

Há dias em que visto esta tristeza profunda pelas pontes que não se construíram, pelos lugares que não se preservaram, pois acredito por inteiro que os finais podem ser, também, poesia. E acolho-me em dor quando assim não acontece e as palavras doem.

As mudanças de estação trazem-me este desassossego, de luto e encantamento, força e fragilidade.

Fascina-me a vida que cresce e os solos que mudam. As promessas de dias longos, as frutas frescas e sumarentas. Comove-me a vida que se abre sem vergonha, abafando os rasgos de timidez e permitindo-se ser vista em todo o esplendor. Gosto dos dias luminosos e do sol que me beija, por entre intervalos de chuvas cálidas e noites frias.

Mas deparo-me com o Inverno que se finda, as lãs que não foram tocadas, as noites extensas que não me chegaram e os espaços internos que não tiveram tempo para nascer.

Quero os vestidos e os bailes e as abóboras que se transformam em carruagens. Mas trago nas mãos as cinzas e o labor do cuidado, do trabalho, do tempo que preciso para chorar e encontrar-me sem certezas.

Vou guardando esta imagem da tristeza como um dos instrumentos da alma. Dos lutos como formas de reciclagem, honra e gratidão. Um lugar onde as coisas, os sentires e a vida não se arrumam em lixeiras ou armazéns. Em verdade, sinto um gosto de chuva e terra molhada na melancolia e muito pouco de infelicidade. Um quarto só meu, onde me resguardo e me mexo a mim mesmo no caldeirão, com uma grande colher de madeira que mexe um caldo pouco nítido. Só o tempo me permite observar os ingredientes, aprimorar o sabor e alimentar-me com algo novo.

Talvez seja o cansaço que me leva. Talvez seja a fome que a alma tem. Ou talvez seja o Mistério, que não pode ser definido com palavras, que me habita e me acompanha nos lugares das cinzas, conhecendo os caminhos que não vejo, os lutos respiro e também a vida que me vai tomando, subtilmente, com passos finos, para lugares de riso e sol, águas salgadas e sabores doces. Tudo vai tendo lugar. Não quero perder pedaços.

Abro-me ao paradoxo, restando-me a fé no chão que piso e no terno abraço da vida que me sustém. Porque nem da minha história aceito abrir mão. E isso é, também, um belo verso.

 
 

Artigo publicado na Revista Vento e Água nº 50

 

ÉLIA GONÇALVES
DIRECTORA CRIATIVA

 

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