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A veia no pescoço

“Um homem em busca do tesouro do espírito

Não o encontra, por isso reza.

Uma voz interior diz ‘Foi-te dada

A intuição para lançar como uma seta

E depois escavar onde tenha acertado,

Mas lançaste com toda a tua precisão de arqueiro.’

(…) O que buscas

Está mais perto do que a grande veia

No teu pescoço. Deixa cair a seta.”

 

Rumi

 

Dei por mim a pensar na impermanência da nossa condição humana, e em como tudo o que agora damos por certo nos pode ser tirado com a facilidade de um sopro de vento. Que coisa para se pensar, numa altura como esta, em que depois dos rigores das estações frias, do cansaço de um ano de trabalho, aquilo por que a mente e o corpo clamam é por descanso e leveza. Anseio pela “vida fácil” que o Verão promete, acalentada pelas memórias das férias da infância, onde o tempo não tinha fim, e das tardes vazias surgiam as melhores brincadeiras e as maiores aventuras. Entro no verão de olhos brilhantes, ansiosos por férias, depois dos dias curtos e chuvosos do inverno e das tentativas primaveris de instalar o calor, tudo parece fácil, abundante em tempo e possibilidades.

A verdade é que esta promessa do início do verão nunca se manteve muito tempo, para mim. A par destas memórias mais infantis – talvez fruto de uma certa curadoria psicológica – chegam-me sensações de que o Verão traz, frequentemente, a ideia de morte, a percepção de finitude. Pode ser apenas a minha Perséfone interior, antecipando o regresso ao submundo dentro de alguns meses, ou pode ser porque no auge de uma estação se aninha já a semente da próxima. O solstício é também o início do declínio dos dias, a infalibilidade do ciclo, que traz crescimento e depois declínio. Tudo o que julgamos estar assegurado, na verdade, não o está.

Está assegurada, isso sim, a impermanência, a constante transformação e ciclicidade da vida, muitas vezes em espaços de tempo muito mais amplos do que aqueles em que cabem as nossas curtas vidas. As grandes revoluções do cosmos, e do planeta, relembram-nos da dança constante da criação, entre caos e ordem, entre momentos de crise, desconstrução e fim, e aqueles que trazem segurança e inícios. Não são separáveis, uns de outros, tal como não é possível viver uma existência em constante progressão, aquisição, evolução. Essa é uma das ilusões que a nossa sociedade nos tem vendido, até porque dela depende para manter o tipo de paradigma que a sustenta. Contudo, esta progressão contínua nada mais é senão um cancro – literal e metaforicamente – uma patologia que nos fala da incapacidade de se deixar morrer. Não paramos, continuamos sempre, “sempre a abrir”, em busca de algo, ou de uma meta qualquer, talvez até desconhecida para a maior parte de nós. (Vamos atrás de quê, ao certo?) Durante muito tempo, esta ideia de progressão constante trouxe uma expansão de consciência e uma transformação de vida extraordinárias. No entanto, nada que exista no mundo pode fugir da lei da vida: um dia irá morrer e desaparecer. E, como tal, por razões provavelmente muito mais complexas do que esta visão simplista, muito do que conseguimos alcançar parece estar a escapar-se.

Sei que esta reflexão mais negra surge também de um encontro com um belíssimo livro de fotos sobre a condição das mulheres num país onde grassa uma ditadura religiosa e se sofrem ainda as consequências de anos e anos de guerra. Nas fotos deste livro, vi os rostos de mulheres ao longo de várias décadas, dos anos 70 do século XX à actualidade. Mulheres como eu e como as mulheres que podem estar a ler este artigo. Mulheres que um dia caminharam livres na rua, que um dia se sentaram nos bancos das universidades e estudaram, mulheres que tinham (algum) controlo sobre as suas vidas, tanto quanto uma mulher no mundo consegue ter. De um dia para o outro, perderam-no. Como um sopro de vento, como uma grande vaga, as vidas que consideravam suas – e que talvez achassem asseguradas – foram varridas para longe, deixando-as nuas e vulneráveis, debaixo dos panos pretos que lhes cobrem o corpo e os cabelos. Com uma resiliência admirável, perante as forças destrutivas, estas mulheres continuam a vida do dia-a-dia, desabrocham uma vez mais, como as flores que aparecem no meio dos escombros de guerra, visíveis por todo o lado, no seu país. Com a força indomável da vida, encontram beleza e cor escondidas nas sombras, honram os fantasmas que espreitam das janelas estilhaçadas, continuam, com o que têm, como podem. Em mim, desperta o respeito e admiração por estas mulheres, pela sua coragem e persistência, pelo amor que dedicam à vida.

É tão interessante, como as vivências diárias de sustentação da vida – varrer, cozinhar, arrumar, embelezar – são tão contentoras e trazem tanta sanação. Quando tudo o resto falha, só resta continuar a viver, voltar ao básico, voltar ao corpo e às suas necessidades. Infelizmente, a nossa sociedade ocidental e ocidentalizada, foca-se cada vez mais no reino do mental, das ideias, dos conceitos, do impalpável. O corpo é, cada vez mais, tratado como uma posse, um objecto que nos pode servir ou que nos pode pesar. Quantas e quantos de nós estão confortáveis e satisfeitos com o corpo que têm, exactamente como ele é? Eu não estou, e acredito que a maior parte de nós também não esteja. Podemos despender muito tempo com ele, para que seja saudável e tenha as medidas standard da cultura, mas quantos de nós se permitem, realmente, estar no corpo, habitá-lo, viver desde o corpo? Sentir. O coração a bater, o nó na garganta, o aperto no peito, o estômago a revolver-se, sentir. E permanecer aí, sem fugir?

Corpo, mulher, terra. Todos tratados de formas muito semelhantes pela cultura moderna. É o corpo que parece ser pecado e tem de ser escondido; ou que parece desadequado e tem de ser talhado para a perfeição. E é o corpo que persiste, a cada dia, e nos permite estar aqui, vivos, neste planeta, numa experiência única. O corpo é o território do feminino, e a sociedade que estamos a criar é, cada vez, desencarnada. Contudo, quando sentimos o coração a bater mais rápido, quando sentimos o nó na garganta, temos medo. Temos medo de existir no corpo e de deixar de existir. Estamos obcecados com a (nossa) imagem, só achamos que a vida é real, se estiver exposta num espaço digital que não tem existência corpórea, e pode desaparecer com um apagão.

Vivemos centrados num mundo insubstancial, cada vez mais frágil, onde tudo o que temos está a um código de ser desprogramado, distorcido, terminado. Deixamos a nossa memória ser contida por máquinas, deixámos de saber de cor o número de telefone de quem nos é mais próximo, enquanto os nossos ancestrais carregavam em si, e imprimiam na paisagem à sua volta, todo o seu vasto conhecimento. Temos dificuldade em nos situarmos no espaço físico, no terreno, porque não habitamos o corpo, e deixámos de saber escrever com lápis e caneta, cortando ligações milenares, fruto de milénios de evolução mamífera, que nos permitem uma série de competências vitais. Abandonámos o território do Feminino, abandonámos o corpo. Achamo-lo insuficiente, menor, pecaminoso… O corpo que persiste, como animal fiel, contra tudo e contra todos, mantendo-nos vivos, aqui. O corpo que queremos limitar e dominar. O corpo feminino, que tem servido como animal reprodutor para toda a sociedade; o corpo feminino que tem ocupado o lugar da grande Serva.

A sociedade extraordinária que construímos e na qual vivemos, que nos trouxe tanto crescimento, tanta descoberta e tanta inovação, que tem permitido uma expansão de consciência importantíssima, também está sujeita aos mesmos ciclos de vida-morte-vida de todos os organismos vivos, e tudo o que hoje nos parece garantido, pode desaparecer num abrir e fechar de olhos, como que arrastado por uma vaga imensa. Aqueles que são os direitos que as nossas mães conquistaram, não estão de pedra e cal; a própria existência que achamos ser um dado adquirido é frágil e impermanente.

Voltar ao corpo é voltar à terra, voltar à raiz, voltar ao feminino arquetípico. Aqui, temos sempre as bases da vida para nos ancorar, o acto de estar vivo e todo o seu devir. Nesta simplicidade do corpo, das suas necessidades, dos seus gostos, esconde-se a sacralidade da vida. Como diz Rumi, o que procuramos está mais perto do que a grande veia do nosso pescoço, pulsa-nos na carne, abre-se no coração, revela-se nas imagens da nossa psique. Os gestos deste feminino, que tanto desprezamos por ser tão mais pequeno do que a grandiosidade das conquistas da nossa sociedade patriarcal, é o fio que tece a trama da vida. Na sua humildade, na sua simplicidade, está perto do mistério. É o que permanece, contra tudo e contra todos, é o que persiste. Cada gesto, um gesto de gratidão, um louvor à própria Vida, um acto de amor. Afinal, só o amor real tem a mesma resiliência deste corpo vivo, e é neste corpo vivo que melhor experimentamos e sentimos o amor.  

 

 

Artigo publicado na Revista Vento e Água nº 53

 

 

PATRÍCIA ROSA-MENDES
FORMADORA – ÁREA TERAPIA

 

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