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Encontrar Vida no Caos – o mito nas pequenas coisas

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O momento de perceber a realidade concreta como uma realidade interna, como uma imagem da alma, é um momento intemporal, quando o mundano encontra o divino. Este é o processo de soulmaking.

Marion Woodman

 

Ainda me recordo de quando Setembro era o meu mês favorito. A minha consciência cíclica era visceral e não cognitiva. O ansiado verão estava nos últimos dias e a praia, onde eu habitava durante as férias, via-se vazia e em silêncio. Ainda se mergulhava nas manhãs em que o calor o permitia, mas já pouco importava se vinha o frio. Era tempo de caminhar na areia, de contemplar, de estar com os poucos que também ficavam para os últimos dias. De alguma forma, almejava-se já pelo regresso a mangas compridas e dias de casa e lareira. A escola, lugar detestado há tão poucas luas, era um espaço de saudade. Reencontrar amigos, o cheiro dos livros novos e o material escolar.

Estava longe da burocracia, da ansiedade pesada do regresso, das compras e das tarefas para que a vida continuasse. O meu processo era mítico. Uma imagem de alma que se entranhou na pele, a ponto de eu verbalizar, durante anos e anos a fio, que Setembro era o meu mês favorito. Continuei a fazê-lo mesmo depois de estar longe do cheiro das marés vivas, das trovadas secas e das primeiras chuvas. Mesmo quando a paragem, as caminhadas e uma suave reentrada no mundo foi substituída pela correria, pela burocracia e pelos inícios laborais violentos.

Muito mais tarde percebi que este Setembro antigo e intemporal, lento e carregado de pequenas imagens, fossem elas cheiros, cores ou abraços, era para mim um mito vivo, um lugar de alma, o sagrado das pequenas coisas a carregar de energia a minha vida.

Para o processo de soulmaking – o extraordinário ato de vivenciar o mito nas ações mais simples da vida – a pressa, a rigidez mental e a sobreposição de tarefas tornam-se um problema.

O outono dá lugar a um deixar cair de folhas, às chuvas que trazem de volta vida a tudo o que cresce debaixo do solo e pede um reajuste nos tempos, na energia a despender e até na luminosidade dos dias. A vida cíclica pede-nos o trabalho necessário para a preparação do inverno. Mudança no vestuário, o abrir armários aos casacos e mantinhas de sofá, o voltar às sopas quentes ou às lãs que tricotamos.

A estas tarefas ainda um pouco poéticas e floreadas, acena-nos a bomba da realidade. O regresso ao trabalho, a reentrada das crianças na escola, os materiais a comprar, os projetos para iniciar, os horários, as expetativas, o novo e o velho a quererem ser vistos e ganhar espaço. Um cansaço que se entranha em nós como se o descanso das férias não tivesse surgido. Uma corrida que parece inimiga do corpo e da estação, que se pede mais lenta talvez, e mais focada.

Paradoxalmente, a estação requer trabalho. Ainda a colheita e o guardar, o arrumar e preparar. Um labor externo intenso, tantas vezes sem espaço para o interior. Um labirinto sinuoso por entre trilhos e viragens, sem saber onde chegar e sem poder ficar parado. Trabalhamos reinícios sentindo a presença dos fins de ciclo.

Será este cansativo paradoxo que nos prepara para o Inverno? A energia necessária para suster a densidade das descidas, as noites escuras e o recolhimento? Pois há partes de nós que só crescem no escuro, e precisamos, inegavelmente, de lhes dar espaço e amor. Trabalhar e parar, laborar e abrandar. Caminhar sem rede nos fios emaranhados da vida mundana.

Uma coisa é certa. Há mais cansaço quando o mito se vai, quando o significado se retira e a vida se constrói somente de tarefas. O que mantém a alma viva, quando a intensidade dos dias nos faz perder de vista a nós mesmos e a vida a acontecer?

Há que agarrar o mito, ainda que no caos. Agarrar no peito as imagens da alma que nos alimentam os dias de Outono. Quais os mitos vivos que nos embalam, que transformam dias longos em momentos intemporais?

O cheiro das castanhas assadas que começam a chegar? O chá quente nas mãos ao som das gotas de chuva na janela? O cheiro da terra molhada que invade cada pequeno centímetro de sensibilidade porosa dos nossos sentidos? Um certo poema que nos recorda a eternidade efémera da vida? O que nos constrói a alma quando tudo o resto parece perder-se por entre as horas do dia?

O mito “move-nos”, ativa emoções e metáforas intemporais. Sussurra-nos estórias em silêncio, sem construção necessária e com movimento interno. Não nos retira do lugar, mas dá-nos chão, pertença e sentido. Uma mitologia viva não nos pede que construamos catedrais, mas que olhemos para as pedras do caminho e possamos encontrar nelas as catedrais de todos os tempos, as canções que já não são escutadas, e que contam a história de todos os outonos do mundo e de tantos como nós que se preparam para o Inverno. Recria-nos nos pequenos atos mundanos da nossa extraordinária vida. Criatividade e alma são – desde e para sempre –  as teias que nos ancoram.

E para alimentar a alma teríamos que encontrar maneiras de nutrir a imaginação, começando com fertilizantes, sim, da pilha de compostagem, e depois revirando a terra com a lâmina de um arado na época certa para dar luz e ar, e regá-lo cuidadosamente com água-viva até que no final possa sustentar um jardim para nos alimentar novamente.

Stephenson Bond

Artigo publicado na Revista Vento e Água nº 38

ÉLIA GONÇALVES
DIRECÇÃO CRIATIVA E DE PROJECTOS

 

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