Blogue

Inteireza no feminino – o lugar dos ossos

“Ela é uma floresta selvagem e emaranhada, com templos e tesouros escondidos no interior.”

John Mark Green

 

Muitas vezes, quando começo a falar do feminino, surgem-me as palavras colo e abraço. Sinto que a mulher tem este lugar intrínseco, enraizado na biologia, na alma, que é o de encontrar espaço dentro de si para embalar, nutrir, escutar, cuidar, um gesto que lhe é natural e, na maior parte das vezes, inquestionável, até (ou principalmente) por ela mesma.

Mas na poesia bonita que carregam estas palavras esquecemo-nos dos pedaços rasgados, remediados com fita-cola, que os diários das nossas vidas vão coleccionando, os momentos de profundo cansaço, ou de esquecimento de nós mesmas, que este lugar intrínseco por vezes comporta.

Diz-se na cultura popular que para cuidar de uma criança é preciso uma aldeia, só que as aldeias ficaram algures entre a serra, o campo ou a maresia, longe demais dos nossos beirais.

Para cuidar de uma mulher é preciso ela mesma, mas tantas vezes andamos perdidas, medindo passos e contando horas que não nos sobram – ou não nos permitimos – bocados para enterrar os dedos na terra e cheirá-la, fechar os olhos e escutar os murmúrios do corpo, contar as nossas estórias a alguém que as (só) escute, dançar ao ritmo do que pede a alma.

A vida real, a de todos os dias, vai deixando sulcos neste caminho para a inteireza da autoescuta e da autonutrição. Vai-nos sussurrando que não há tempo para tudo, que há muito para arrumar antes, que a mulher é independente (ai, essa palavra com que eu tanto enchia o peito pelos vintes e trintas!…), que é capaz de tudo sozinha.

Mas há sempre escolhas e preços a pagar. Os ossos que deixamos pelo caminho, em lugares onde secalhar não nos apercebemos. Ou onde sentimos que os outros trilhos estavam intransitáveis. São os afectos, as emoções, a vulnerabilidade partilhada, a coragem de pedirmos ajuda, o colo onde podemos encostar a cabeça e deixar a barragem desfazer-se. Ossos subtis, menos visíveis, em lugares sensíveis, que causam dor. Onde se perde vida, conexão, amor.

Nem sempre os passos nos levam por onde o sonho comanda (a vida). Nem sempre o sonho nos leva onde pensávamos ir dar. Mas acredito que há um momento, às vezes fugaz e ao qual não prestamos atenção, outras um sinal bem audível no peito, em que nos apercebemos que há mais para viver e sentir do que este vaivém de tarefas encadeadas e amparo ao outro. Há um momento, ou vários, em que esta floresta que levamos dentro, selvagem e emaranhada, se abre para que encontremos os nossos templos onde orar. Num convite à travessia interna, à nossa estória pessoal, às encruzilhadas onde perdemos as nossas ossadas, para que neste revisitar possamos despedir-nos do que já não nos cabe na vida e voltar a encher-nos com o que ainda faz sentido.

Para mim, é comum encontrar-me com estes lugares sagrados dentro do círculo (de mulheres); escutar estórias de vida de outras mulheres é mergulhar na minha própria alma, em quem sou, no que me constrói e alicerça. É sentir a teia de que falo tantas vezes estremecer, sendo tocada, estreitar-se e alongar-se, olhar sem medo a floresta de outrem enquanto percorro também a minha, nutrir a minha alma. Sentir-me enriquecer.

Não há muitos espaços, no quotidiano, onde encontrar uma escuta silenciosa, um ressoar dos tambores internos, um colo, um olhar inteiro que nos permita, apenas, espelhar as nossas palavras e o nosso sentir.

Estamos muito cheias de coisas e muito vazias de nada. Do nada de que o feminino se alimenta, o não-fazer, o vácuo, o prazer por si só, sem querer chegar a lado nenhum nem descobrir nada. Dançar na sala só porque a música é boa. Perdermo-nos num livro de contos e encontrarmos também os nossos. Ficar no sofá só porque.

Porque sim, sem mais.

E nesse sem mais, encontrar o muito mais de que somos feitas.

 

MARGARIDA MONARCA
TUTORA DE EDUCAÇÃO E CÍRCULOS DE MULHERES