“(…) O kurgarra e o galatur escutaram as palavras de Enki
Foram até ao submundo
passaram pelas portas como moscas, através das frestas dos portões
Entraram na sala do trono onde estava a rainha do submundo
Não havia linho sob o seu corpo
Os seus seios permaneciam à mostra
O seu cabelo encaracolava-se na cabeça como palha
Ela estava a chorar: Oh, o meu interior
Eles choraram: Oh, o teu interior
Ela chorou: Oh, o meu exterior
Eles choraram: Oh o teu exterior
Ela gritou: Oh, a minha barriga
Eles gritaram: Oh, a tua barriga
Ela gritou: Oh, as minhas costas
Eles gritaram: Oh as tuas costas
Ela gemeu: Oh o meu coração
Eles gemeram: Oh o teu coração
Ela chorou: Oh o meu fígado
Eles choraram: Oh o teu fígado
Ereshkigal parou.
Olhou para eles
– Quem são vocês, chorando, gritando, gemendo comigo?
Se são deuses, abençoo-vos
Se são mortais, dar-vos-ei um presente
Dar-vos-ei água como presente, o rio está cheio
O jurgarra e o galatur responderam:
– Não desejamos isso
Ela disse: Dar-vos-ei trigo como presente, os campos estão para a colheita
O jurgarra e o galatur responderam:
– Não desejamos isso
Ereashkigal disse:
– Falem então. O que desejam?
Eles responderam:
– Desejamos apenas o corpo pendurado num gancho na parede
Ereskhigal falou:
– O corpo pertence a Inanna
Eles responderam:
– Quer pertença à nossa rainha,
Quer pertença ao nosso rei,
É aquilo que desejamos
O corpo foi-lhes oferecido
O kurgarra salpicou o corpo com o alimento da vida.
O galatur salpicou o corpo com a água da vida.
Inanna ergueu-se.
– A Descida de Inanna –
O mito de Inanna, escrito em poema e com inúmeros capítulos, tem na Descida e, especialmente, no resgate do seu corpo, morto por Ereshkigal, uma das passagens mais belas de toda a trama.
Ao saber da morte de Gugalana, marido de Ereshkigal, a rainha do submundo, Inanna, deusa dos céus e da terra decide descer os sete portões do mundo de baixo para ir ao encontro da sua irmã. Em cada portão é despida de um dos ornamentos reais e entra no submundo como a mais comum dos mortais, nua e curvada. Ereshkigal, repleta de dor e raiva, olha-a com os seus “olhos de morte”, grita-lhe e bate-lhe, matando-a e perfurando-a com um gancho que pendura numa parede.
Com a ajuda de Enki, deus da sabedoria, da água, da fecundidade e da criação, que a partir da terra e da sujidade das suas unhas cria estes dois seres assexuados e pequenos, galatur e kurgarra descem ao submundo e, fazendo eco dos soluços de Ereshkigal, conseguem conter o fluxo de dor e raiva da Deusa e, dessa forma, resgatar Inanna.
Só a partir daí a deusa dos céus e da terra é salpicada com o alimento e com a água da vida, podendo erguer-se novamente.
Sempre que leio sobre kurgarra e galatur, recordo-me das carpideiras, chorando lamentos e gritos de dor que ecoam com as dores de todos os que choram a perda de um ente querido. Que lugar é este, de onde vêm estes pequenos seres, cuja função é sentar-se com a Deusa do submundo e espelhar empaticamente as suas dores e lamentos? E qual o grande tesouro que encerra este ato, que permite à Deusa sair do seu próprio pranto e olhar em volta? Como é que o sentar-se e permanecer junto da dor, nossa ou do outro, permite saídas que, por vezes, o esforço para nos tirarmos desse mesmo lugar não trazem?
Compaixão vem do latim compassione ou compassio.onis, e significa sentimento comum, ou a capacidade de sentir com o outro. Sintonizar e ressoar com que o outro diz, com o que sente, com o lugar interno onde está. Ainda que isto pareça relativamente simples, entrar num estado compassivo requer disponibilidade e esforço real. A compaixão exige presença, um processo de abertura e recetividade em que a curiosidade verdadeira e a vontade de escutar a história do outro nos coloca num contexto relacional de reciprocidade da condição humana.
Mais difícil ainda é encontrar um espaço dentro de nós em que, sem querer mudar o outro e as suas circunstâncias (algo perfeitamente humano, pois queremos genuinamente apartar o sofrimento alheio), nos disponibilizamos a permanecer no aqui e no agora, com aquilo que há. Suster o momento com tudo o que ele acarreta permite que, nesse espaço, o outro possa sentir-se visto e reconhecido sem que seja necessário mudar nada. Haverá algo que possamos querer mais do que ser vistos, reconhecidos e aceites pelo que somos, onde estamos e pela forma como sentimos em determinado momento?
A compaixão profunda requer, naturalmente, a presença do mistério. A confiança no Mistério. Não podemos ser compassivos sem “sentir com”. E isso implica expormo-nos, também, ao que há no momento, aceitando receber e ressoar com dores que, por vezes, são tão nossas que nos impelimos a fugir delas. Defendemo-nos da dor, dos nossos traumas pessoais, tentando retirar o outro do lugar onde está e, dessa forma, afastando-nos cada vez mais dele e de nós mesmos. Talvez por isso, galatur e kurgarra sejam seres feitos de terra, que tudo acolhe e onde os lugares de submundo e escuridão, mais do que dor e medo, acarretam útero, colo e vida.
Quão sagrado é o ato de nos abrirmos à vulnerabilidade do outro, com tamanha plenitude que nos permitimos ser tocados por ele? De ficar. Permanecer e acolher, em escuta verdadeira, silêncios doces e lágrimas partilhadas os lugares de verdade de cada um de nós? Este é o lugar onde os milagres acontecem, uma vez que a compaixão invoca um estado psicofisiológico que permite que aquele que está mergulhado na dor se sinta visto e, por isso, se abra a novas possibilidades de ver o mundo.
Assim nos diz Ereshkigal, cujo eco compassivo de galatur e kurgarra, amainou a sua dor a ponto de ela querer presenteá-los. Sob o ato de testemunhar em verdade, escutar e ecoar com a dor, foram abertos caminhos para que esta, no tempo certo e ao sentir-se escutada, possa olhar em volta e ganhar outros contornos, encontrando semente, onde antes era somente escuridão.
“Amar é tocar com amor as coisas que anteriormente tocámos com medo.”
Stephen Levine
Publicado no nº32 da Revista Vento e Água
ÉLIA GONÇALVES
DIRECÇÃO CRIATIVA E DE PROJETOS EDT