“Os gregos antigos contavam a história do Minotauro, o homem de cabeça de touro e devorador de carne humana que vivia no centro do labirinto. Era uma fera ameaçadora e, no entanto, o seu nome era Astérion – Estrela. Penso muitas vezes neste paradoxo quando estou sentado perante alguém de lágrimas nos olhos, em busca de uma maneira de lidar com uma morte, um divórcio ou uma depressão. É uma fera, isso que se agita no âmago do seu ser, mas é também a estrela da sua mais íntima natureza. Temos de cuidar deste sofrimento com extremo respeito para que, no nosso medo e cólera para com a fera, não descuremos a estrela.”
Thomas Moore
Ariadne, filha de Minos e Pasifae, ficou popularmente conhecida pelo fio que emprestou a Teseu e que lhe permite sair do famoso Labirinto, após o confronto com o Minotauro. Ela, porém, é em si mesma a Senhora dos Labirintos e dos Caminhos, das Serpentes e do Fio. É a companheira e sacerdotisa de Dionísio, o renascido, o senhor dos ciclos, do êxtase e da união mística. A ela foi consagrada a corona borealis, constelação também dedicada à sua irmã celta Arianrhod, a Senhora da Roda de Prata. Mais do que a “princesa que ajuda o herói na sua demanda”, ela é o princípio feminino que mantém a ligação com a própria vida.
Há qualquer coisa de profundamente irresistível em Ariadne e na sua história. Talvez, porque, como em toda a mitologia, existem múltiplas versões dos acontecimentos, dos seus porquês e até dos seus desfechos. O paradoxo está presente em cada parte desta narrativa, assim como nas motivações da Senhora dos Fios. A mim, atrai-me o fio de que Ariadne é detentora. Encontramos, em grande parte da literatura sobre o tema, o símbolo do fio como aquele que guia a viagem interior humana, com todas as suas perdas e iniciações, simbolizado pelo próprio labirinto.
É também verdade que, em nessa mesma literatura, o Minotauro seria o monstro, a besta, a representação da natureza selvagem, instintiva, indomável. E, num mundo onde aquilo de que temos verdadeiramente medo é do que não dominamos, do que se mostra selvagem e instintivo, o labirinto parece servir perfeitamente para aprisionar essa parte de nós que excluímos.
Porém, esta ação nunca é gratuita. Não há nada aprisionado e aparentemente esquecido que não exija sacrifício. Seriam nove rapazes e raparigas (em algumas versões eram sete) enviados para o labirinto, numa tentativa de apaziguar os instintos selvagens e feridos do Minotauro.
Quantos labirintos construímos para conter os nossos lugares internos, selvagens e instintivos, pura e simplesmente porque não sabemos o que fazer com eles? Num mundo onde só o que é racional e ordenado encaixa, onde colocar o indomável? Aquilo que não podemos explicar, mas que nos conecta com o que de mais ancestral, essencial e cru que trazemos dentro? Emparedamos, por isso, o Minotauro, sacrificando-nos a nós no caminho. Caminhamos pela metade, acreditando que seremos melhores sem ser inteiros.
As suas necessidades e gritos, contudo, não são algo a que possamos escapar. Até enveredarmos nesses estreitos trilhos, cheios de indefinições, incertezas e penumbras, a parte animal em nós continuará a querer ser vista e a esbracejar quando menos esperamos.
O fio de Ariadne entra na demanda como um sussurro, pleno de Mistério. Um novelo dourado, para desenrolar no caminho e seguir no carreiro de volta. Ele surge numa ajuda mágica, tão presente nos contos de fadas. É a linha que une o princípio e o fim, a ligação entre mundos.
Tão aparentemente simples, o acréscimo do fio que transforma a demanda do guerreiro. Talvez seja esse o dom da alma, o ponto da simplicidade, a guia silenciosa dos caminhos. O mistério do passo a passo, a consciência do desenrolar e enrolar da teia onde todos pertencemos.
Não há como adentrar o profundo, a escuridão, a fisicalidade e os instintos sem o fio que une, a alma que respira cada um desses lugares. A consciência do fio é a consciência da pertença ao que nos rodeia, a tudo o que temos dentro. Ela revela-nos, talvez, novos caminhos internos e soluções inesperadas na vida. Ela não vem da espada que esquarteja, mas da alma que inclui.
Talvez, em tempos antigos, o fio servisse não somente como guia de saída, mas fosse por si mesmo a bússola de encontro e união ao Minotauro, esse meio-irmão da Senhora dos Caminhos, que talvez seja também Teseu, Dionísio, Ariadne, ou o próprio labirinto.
Levar connosco a alma e sair da dualidade, encontrando por fim um lugar de pertença, onde os instintos, o sagrado ou a terra onde pisamos sejam todos parte dessa inteireza de que somos feitos.
“O fio dourado de Ariadne é como a seda da aranha e guia-nos em espirais até ao centro da nossa própria teia (…) para reclamar as nossas partes rejeitadas e sanar o que estava quebrado.” (Ian Siddons Heginworth)
Publicado no nº31 da Revista Vento e Água
ÉLIA GONÇALVES
DIRECÇÃO CRIATIVA E DE PROJETOS EDT