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O Amor atravessa o Silêncio

O Amor atravessa o Silêncio

O amor, na relação com o outro, nasce no seio dessa mesma relação. Os laços são criados a partir de verdadeiros significados de bem-estar em direção ao outro, um conjunto de afetos e sentimentos que abrem espaço para a genuína comunicação, a autenticidade, o respeito e o interesse. Esse amor instala-se desde o nascimento de um vínculo e, desde o coração, a alma pode reconhecer uma sensação de “estar em casa”, um espaço onde se pode respirar segurança e onde os próprios medos podem ser acolhidos.

Este amor não é exclusivamente conjugal ou romântico. Atravessa todas as configurações possíveis e está presente “quando duas ou mais pessoas se juntam” em nome desse movimento de acolhimento e de verdade. Famílias, cônjuges, amigos, vizinhos, companheiros de profissão ou até mesmo em algumas relações terapêuticas, o amor entra, preenche e cumpre o seu papel sanador.

A atuação do amor é invisível, mas perfeitamente percetível, não depende de palavras concretas e nem de atitudes ou comportamentos específicos – ainda que alguns destes sejam facilitadores do seu reconhecimento –, mas a sua existência antecede a ação e o pensamento, permanecendo ancorado no local mais seguro de todas as conceções humanas – o silêncio.

Reconhecer esse amor que se instala com “o outro” é reconhecer o amor que há em nós. O que sentimos se fecharmos os olhos e deixarmos ir todas as capas que cobrem a nossa identidade humana? Imaginemos que soltamos as exigências do dia-a-dia; que soltamos todas as responsabilidades; que soltamos todas as culpas e todas as dores. O que sobra de nós quando abandonamos os pesados guiões que herdamos à nascença? Talvez possamos sentir esse contato mais profundo com quem nós somos. E, talvez, desde o silêncio, possamos sentir esse amor que somos e que atravessa todas as nossas capas e, provavelmente, ver-nos-emos todos muito mais brilhantes do que imaginávamos que fossemos.

No que toca às famílias esse amor, que atravessa o silêncio, pertence a todo um grupo, ou clã, e abraça-nos, logo na nossa conceção. É um amor que se funde no ADN de tudo o que nos constitui e, por isso, apesar da sua grande complexidade, torna-se fácil de o compreender. É-nos fácil perceber o amor entre pais e filhos, entre irmãos, entre avós e netos. Até mesmo o amor imenso de uma mãe para com o seu filho doente, triste, toxicodependente ou recluso. Claro que não precisaríamos de ir tão longe, mas o amor, nesta perspetiva é, não só imensurável, como sentido numa profundidade de verdade que podemos definir como incondicional. Os pais querem salvar os seus filhos, na realidade é comum perceber-se que seriam capazes de “dar a própria vida por eles”.

Contudo, ao assistirmos, por exemplo, ao (novo) filme de Almodóvar – “Julieta” (2016) – (exibido no Festival de Cannes deste ano, cujo drama é inspirado em três contos de A Fugitiva, da escritora canadense Alice Munro, vencedora do Nobel de literatura em 2013) contatamos com outra realidade, tão bem refletida nesta sétima arte. A de que o amor, pela sua força e intensidade, também é capaz de criar o sofrimento das partes. É importante sabermos que o amor precisa de respeitar certas ordens – por exemplo, a ordem de que os pais são os cuidadores dos filhos – e assim fortalecer todas partes. Este filme retrata a realidade do amor “desordenado” presente nas relações familiares e que pode ser mais comum do que imaginamos. Em “Julieta” fica retratado o amor que acontece na direção “oposta”, de filhos para pais, desejando os primeiros salvar os segundos, mesmo “destruindo” a própria vida. Esta última visão não nos é tão fácil perceber e, por vezes, é profundamente doloros aceitá-lo. Compreendemos, é certo, o amor que temos aos nossos pais, mas desconhecemos até onde nos pode levar a força desse amor (quando desordenado). Pode ser surpreendente pensarmos nas repetições de padrões familiares, e na sua base, a presença deste amor. Como pode ser igualmente surpreendente imaginarmos que a nossa maior limitação vem, muitas vezes pelo amor aos nossos pais, tios ou avós, e por confundirmos a nossa direção para servir esses outros do que a nós mesmos.

Ninguém demonstrou tão bem como Bert Hellinger a evidência dessa influência, do amor ancestral, revelando que durante várias gerações, alguns acontecimentos importantes na história familiar, se não foram “resolvidos” no momento em que decorrem, prosseguem atuando (por amor inconsciente) na vida presente dos filhos e netos, que nada sabiam sobre estes assuntos. Acontecimentos familiares, como crianças falecidas em idade precoce, abortos, relações violentas, migrações, parceiros anteriores ao casamento, doenças, segredos ou acidentes graves… podem definitivamente alterar o destino da família, provocando consequências que se herdam mesmo que os seus protagonistas iniciais já não estejam vivos. Esta herança viaja silenciosamente pelo amor. É sempre o amor.

De regresso ao filme de Almodóvar contactamos com esta realidade e, de uma forma clara, percebemos que o “drama” vivido no seio da família retratada “passa” entre gerações, mesmo desde o silêncio, desde o segredo, desde o “não dito”, impactando profundamente as gerações e as suas relações. É curioso refletirmos que o próprio cineasta, antes de conferir o nome final ao filme, tinha numa primeira escolha o título “O Silêncio”.

Nas constelações familiares quase sempre se revela este Amor familiar que ocorre em silêncio, o amor que leva os “posteriores” (descendentes) a imiscuírem-se nos assuntos dos “anteriores” (ascendentes), e a estarem disponíveis, inclusive, a sacrificar as suas próprias vidas em nome desse amor. Este é o “amor cego” que, longe de resolver o problema da família, cria um novo problema tanto nas suas vidas individuais como na família, já que não facilita a ordem essencial entre familiares.

Qual o nosso lugar dentro do (nosso) clã familiar, quais os dramas que não nos dizem respeito? De que forma as crenças de outros são ainda as nossas crenças? O que há em nós que são somente guiões repetidos de outros? E, principalmente, como acontecem as ordens do amor que silenciosamente atuam nas nossas relações?

Chega um momento em que a Verdade entra e a força da Ordem desperta, como um desejo imenso de libertação. Alguém que “já não pode mais”, está cansado, por mais que tente a vida não avança, sente o peso e o sinal de que algo “não lhe pertence”. E esse é o momento em que devemos questionar silenciosamente sobre o que tanto precisa o coração que nos habita. Abrir um diálogo interno, desde a conexão e a maturidade, observando sobre que movimento nos pede a vida que façamos para que o amor possa fluir livremente em todas as áreas da nossa vida.

“Julieta” – Pedro Almodóvar – 2016
Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=s0EU7b3S31I

José Miguel Silva
Facilitador Constelações Familiares