A janela do amanhecer tem segredos para sussurrar. Não adormeças de novo.

Rumi

 

Ao tentar oferecer uma definição mais clara sobre mitos, histórias, lendas e afins, chega-me uma simples frase da Clarissa Pinkola Estés: “quando se conta um conto, a noite vem.”

A força destas palavras abana-me sempre, retirando-me dos meus lugares seguros e constantes. Detenho uma breve imagem de mim na noite, deitada na areia a contemplar as estrelas. Ou desperta devido a uma insónia, rodeada de silêncios e observando a rua pela janela. Nestas memórias, independentemente da idade que tenho, a sensação é similar à de uma criança. A noite é o mistério e contém tesouros e segredos que me alcançam, ainda que não os possa definir. Sou ínfima na vastidão de tudo o que vejo. E, no entanto, pertenço a esse todo. Vibro na dança entre o maravilhamento e o temor.

Talvez seja aqui que as histórias e os mitos nos colocam. Nesse lugar em que tudo é imenso e avassalador e, no entanto, conta-nos a nossa história, o geral e o particular num só bailado. 

Poderíamos dizer que, a nível simbólico, transpessoal, ritualístico, os mitos são poderosos guias psíquicos. Numa primeira abordagem, eles têm como função harmonizar-nos, levar-nos a conhecer os ciclos naturais do planeta. Os mitos são guias agrários, sazonais e psíquicos. Ensinam-nos a aceitar a natureza, esteja ela ao redor ou dentro de nós, e a viver de acordo com ela. E, desta mesma forma, forjam peças fundamentais para que possamos encontrar as pistas para fazer as passagens iniciáticas ao longo da vida.

Nos mitos e nas histórias, o mundo “mais que humano” não serve para ser dominado. Ele faz parte do Mistério. Pertence, da mesma forma que nós pertencemos e, por vezes, é um mestre do conhecimento antigo. A separação entre o humano e o não humano e a dominância de um sobre o outro vem da cristalização de conceitos, da descontextualização e da dualidade entre o bom e o mau. Como refere Joseph Campbell, “sempre que nos afastamos da eternidade, encontramos a dualidade. Temos de ler (os mitos) em poesia e não em prosa.”

As histórias são metáforas e, por si mesmo, as metáforas e os símbolos referem-se ao que não pode ser expresso, pois o poder e a imensidão dos significados diluem-se numa explicação simplista. O símbolo leva-nos continuamente à conexão com o Mistério. Esta é outra função dos mitos e das histórias. Abrir-nos para o Mistério da própria vida. Despertar-nos para uma maior consciência sobre a arte de se estar vivo.

Porém, o ponto mais brilhante dos mitos e das histórias tem pouco a ver com definições ou significados. Escutar a história, contar a história, é mais importante do que desvendar a história. Essa é a grande e mais importante função. Uma história serve para ser contada. E se uma história é contada, ela deve ser escutada.

Incluo aqui, naturalmente, a nossa própria mitologia. As nossas histórias pessoais, os sonhos, os anseios, os pequenos episódios que nos transformam. As versões da história nas quais estamos encurralados. As partes da história onde vivemos. As que não conhecemos. Há que destapar as histórias e contá-las. Todas as histórias nasceram para ser contadas. Todas as histórias trazem dentro a canção do universo. Este é o lugar dos contadores de histórias.

Como escutar a canção? Escutando a história. Deixando que se entranhe nos sentidos, permitindo que se molde ao nosso respirar. Como é que a história nos toca e transforma? O que nos sussurra? O que acontece à nossa volta quando a ouvimos? Como lhe pertencemos ou ela nos pertence? Que parte somos nós e como a terminaríamos? O que necessitamos dela, no momento presente?

Remembrar é voltar a unir o que estava desmembrado. Enquanto conceito psicológico, acrescenta-se-lhe o contexto de memória, pois há um jogo com a palavra “remember” (recordar). Quando me permito contar ou escutar a história, recordo, dou-lhe corpo, volto a unir aquilo que foi separado.

Remembro a história quando me ouço a contá-la e me aproprio das novas mensagens que me traz, das circunstâncias onde a situo, das paisagens que me evoca. Quando me dou conta das reações físicas que tenho quando a história me toca. Das pessoas que me lembra, das vivências em que vivenciei (literal ou metaforicamente) aquilo que estou a contar ou escutar. Remembro-me quando me permito viver dentro do Mistério.

Talvez os primeiros contadores de histórias fossem artistas, por si mesmos criadores de mitos. Homens e mulheres atentos à canção do universo. Pessoas que evocavam “a noite” de que nos fala Clarissa Pinkola Estés, maravilhando-nos com a magnitude das estrelas e trazendo a dança entre o maravilhamento e o temor. Pois não há outra forma de vivenciar o Mistério.

Sempre que se conta um conto de fadas, a noite vem. Não importa o lugar, não importa a hora, não importa a estação do ano, o fato de uma história ser contada faz com que um céu estrelado e uma lua branca entrem sorrateiros pelo beiral e fiquem pairando acima da cabeça dos ouvintes. Às vezes, ao final de um conto, o aposento enche-se de amanhecer; outras vezes um fragmento de estrela fica para trás, ou um feixe de luz rasga o céu tempestuoso. E não importa o que tenha ficado para trás, é com essa dádiva que devemos trabalhar, é ela que devemos usar para criar alma.

Clarissa Pinkola Estés

 

 

 Publicado no nº30 da Revista Vento e Água

 

ÉLIA GONÇALVES
DIRECÇÃO CRIATIVA E DE PROJETOS EDT