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Mitologia pessoal – Ser-se Fazedor de Mitos

“Quando conectamos com a nossa alma, conectamos com a alma de todos os seres humanos. Ressoamos com todas as coisas vivas.”

Marion Woodman


 

Quando se fala em mitologia pessoal, é praticamente inevitável imaginar um trabalho individual acerca de quem somos, das nossas estórias e dos processos de superação pessoal. Mas será só isso?

Trabalhar com mitologia pessoal criativa leva-nos a uma viagem de enamoramento com o nosso percurso pessoal, as nossas estórias e narrativas (fixas, atualizadas e “imaginadas”), com descobertas extraordinárias acerca dos mitos, dos contos de fadas e das pistas simbólicas para uma vida épica.

O processo de individuação, a jornada do herói, a jornada da heroína, trazem-nos tomadas de consciência sobre os passos que damos neste processo psíquico de Separação – Iniciação – Retorno.

Podemos definir mitologia pessoal como uma constelação de crenças, sentimentos, imagens e regras que interpretam sensações, constroem explicações e direcionam comportamentos. São eles que respondem à busca filosófica humana: quem sou, de onde venho, para onde vou, o que significa isto….

O mito pessoal é a estória que estamos a viver e a forma como transformamos a matéria das nossas experiências numa estória coerente. Se a mesma é contada por uma vítima, um guerreiro ou alguém desconfiado, o guião torna-se ligeiramente diferente, ainda que os factos sejam os mesmos. Somos “fazedores de mitos” e vivemos pelos nossos mitos pessoais, quer tenhamos ou não consciência deles.  

James Hillman denomina Mythmaking ao processo de ganharmos consciência dos nossos elementos intemporais da nossa estória e dos padrões sagrados que seguem.  Encontrar o universal no único e o sagrado no pessoal. Sharon Blackie, terapeuta junguiana e grande investigadora de mitologia pessoal coloca-nos uma questão: Seremos nós a criar ativamente os nossos mitos pessoais ou apenas revelamos os mitos “escondidos” pelos quais vivemos?  

Henri Corbin traz-nos a mística sufi, com o “Mundus Imaginalis”, o mundo intermédio entre o físico e o transcendente. Um mundo ocupado pelo Alma, na qual surgiam as matrizes de tudo o que existe, os desejos, os sentimentos, as estórias, os padrões energéticos, captados pela criatividade humana. Aqui habitam os grandes temas arquetípicos.  

Atualização de Mitos

A identificação dos mitos – ou partes deste – pelos quais vivemos e nos quais enraizamos um sentido de identidade e propósito, mostra-nos também os seus pontos de conflito, o que já não funciona e a sua necessidade de atualização.

Hillman apela-nos, porém, a uma pergunta profundamente pertinente nos tempos de hoje. Estaremos nós a mergulhar num processo de individuação ou de alienação? O que acontece quando nos esquecemos de que o mundo, os lugares, as pessoas e as estórias não nos pertencem, mas somos nós que pertencemos a eles?

Antigamente, o processo de mythmaking era algo cultural e universal, conectando pessoas e comunidades através das regras e da força da própria natureza. As estações contavam as estórias do mundo e através delas, a mitologia acontecia. Assim como as vivências arquetípicas, o ato de dar à luz – haverá algo mais pessoal e simbolicamente universal do que isso? – ou os rituais de iniciação e reconhecimento.

Talvez tenha sido necessário um momento de Separação e de Iniciação, tão bem explicado no monomito de Joseph Campbell, para descobrirmos quem somos. Porém, corremos o risco de nos esquecer da terceira etapa, a tão importante etapa de Retorno, o regresso a casa e à comunidade.

A maior parte de nós está entrelaçado em mitos pessoais que já não estão sintonizados com as necessidades do mundo, da nossa própria alma e da sensação de pertença. 

Uma mitologia que não é capaz de servir de ponte para maiores significados e inspirações geralmente é acompanhada de mal-estar, desconexão, isolamento, desadaptação ou ansiedade. 

Não podemos separar-nos a nós mesmos do destino do planeta. Não podemos separar a nossa estória da estória do mundo.

Continuamos a ser “fazedores de mitos”, mas os mitos viáveis já não podem ser baseados primariamente nas tradições desatualizadas ou nas doutrinas de um grupo. 

A mitologia criativa serve, mais do que nunca, para colocar ao serviço todos os pedaços de alma que fomos resgatando pelo caminho. Quem somos? Quem queremos ser? Que escolhas conscientes colocamos nos nossos dias, nas nossas casas, na forma como cuidamos do chão que pisamos, da água que utilizamos ou do sorriso que partilhamos com os outros? Somos, definitivamente, os fazedores de mitos na criação daquilo que acontece aos lugares a que pertencemos.

 

Artigo publicado na Revista Vento e Água, número 22

ÉLIA GONÇALVES
SUBDIREÇÃO EDT